“Ética e responsabilidade social não são um peso”

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Em entrevista ao Açoriano Oriental, o empresário e ex-presidente do Sporting, José Roquette, explica como a ética pode ser um valor acrescentado no “conflituoso” meio empresarial e afirma que os Açores devem ser mais “agressivos” quanto ao seu lugar em Portugal     

O que é a Associação Cristã de Empresários e Gestores de Empresas (ACEGE) e quais os seus objectivos?

A ACEGE é uma organização que junta pessoas com responsabilidades de gestão e que segue linhas de rumo próximas da chamada Doutrina Social da Igreja Católica, o que não quer dizer que não convivam no seio da ACEGE outro tipo de confissões religiosas. Nos últimos anos, a ACEGE tem conhecido um desenvolvimento bastante grande no continente, com a fundação de núcleos de Braga ao Algarve, no sentido de que sejam discutidas algumas questões que nós consideramos importantes no âmbito da responsabilidade social das empresas.

E como é que a ACEGE encara a ética e a responsabilidade social das empresas?

Não há organizações em que os Homens intervenham que sejam éticas por si só. Só terão um contexto ético se os que nelas intervierem tiverem um comportamento ético. A ética empresarial é qualquer coisa íntima e interior a cada um de nós, que depois é aplicada ao contexto empresarial. Mas esse é um exercício difícil pois como sabemos, o universo empresarial é altamente conflituante e recheado de interesses que colidem. Um empresário que procura ter sucesso, pode entrar em conflito com os interesses dos seus fornecedores, dos seus colaboradores ou até do mercado. Nesse mundo conflitual e turbulento, é por isso cada vez mais essencial ter uma perspectiva ética, que é fundamental para as empresas e que não representa custos, levando até a um acréscimo de competitividade, porque os mercados valorizam hoje em dia as empresas que têm um comportamento ético.

Pode dar exemplos concretos de como a ética e a responsabilidade social se expressam nas empresas?

Um comportamento ético tem sempre como fundamental a transparência, ou seja, empresas que tenham a preocupação de encontrar pontos de contacto com os projectos de vida dos colaboradores que integram, a todos os níveis, um projecto empresarial, isto porque embora a nossa vida profissional não componha 100 por cento do nosso universo, não deixa de ser, em todo o caso, fundamental para o equilíbrio das pessoas. Ter colaboradores realizados profissionalmente é hoje uma das condições fundamentais para se ter sucesso no mundo competitivo do Século XXI.

Como é que avalia, sob esse ponto de vista, a situação actual da economia portuguesa?

Há já muito caminho percorrido nos últimos cinco anos, não só ao nível da noção de que essas questões são importantes, como também ao nível da adopção final de códigos de ética, transformados em prática diária, como é o caso de grandes empresas como a Electricidade de Portugal (EDP). No entanto, apesar da percepção da importância dessas questões, não há ainda uma transformação em acções concretas e objectivas que corresponda a isso. Mas esse não é um processo fácil, sobretudo quando falamos em encontrar caminhos de aceitação e de assimilação de códigos de ética junto dos mercados e dos accionistas, sempre sujeitos a conflitos.

Problemas como a corrupção ou a fuga ao fisco, que afectam muitas empresas portuguesas, que comentário lhe merecem, como responsável da ACEGE?

A corrupção e a fuga ao fisco não são comportamentos éticos, por mais que queiramos tentar explicar esses fenómenos pela via dos hábitos adquiridos e que custam a mudar. Como desculpa, é frágil… A fuga ao fisco configura no universo empresarial português uma situação séria, que é a da chamada economia paralela. À partida, este é um fenómeno que deve ser socialmente rejeitado, mas num país como Portugal é muito difícil fazer julgamentos finais sobre as questões que se relacionam com a economia paralela, porque há muitos pequenos empresários que são empurrados para o mundo da economia paralela, única e simplesmente por razões de sobrevivência do próprio contexto familiar onde essas pequenas empresas se inserem. Essa é uma zona em que cada caso é um caso, embora, por definição, qualquer fuga ao fisco seja sempre condenável.

Em que medida podemos encontrar o cristianismo nos mercados onde as empresas se movem e que tantas vezes são apelidados de “selva”?

A mensagem do cristianismo é de esperança, mas também de exigência, em termos de comportamentos específicos das pessoas. Quando entramos nesse mundo conflitual dos mercados – e tão cedo ultrapassaremos essa realidade – temos que perceber claramente que um comportamento ético não é natural, não nasce com o ser humano. Surge sim de uma prática e de aproximações sucessivas. Este é um caminho difícil de percorrer, mas que pode e deve ser percorrido, sobretudo porque quando estamos a falar de questões como a ética e a responsabilidade social das empresas, estamos a falar também naquilo que de essencial os cristãos devem ter, que é a capacidade de distinguir o bem do mal. Um comportamento ético, embora íntimo, é possível de transportar para zonas tão conflituantes como aquelas que temos de enfrentar todos os dias para sobreviver no mundo difícil da economia global do Século XXI. A ética e a responsabilidade social, devidamente enquadradas, não constituem um peso nem um handicap, pelo contrário, acrescentam capacidade, que demorou algum tempo a ser reconhecida. Já se percorreu muito caminho desde o tempo em que a teoria económica defendia que a responsabilidade social das empresas era apenas a de ganhar dinheiro e nós, cristãos, acreditamos que a ética e a responsabilidade social das empresas podem tornar o mundo melhor e as empresas mais sensíveis aos problemas das pessoas.

Que interpretação faz desta afirmação atribuída a Jesus Cristo: “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”?

Eu continuo a pensar que foi uma forma de explicar que os Homens têm tendência para confundir conceitos. O contexto dessa afirmação estava relacionado com o cumprimento das obrigações fiscais da época e com a dificuldade em distinguir claramente o que era do domínio divino do que era fundamentalmente relacionado com o Homem como tal, na sua vida do dia-a-dia. Os cristãos têm a responsabilidade de transferir para um plano superior a dignidade humana, sem se distraírem com questões secundárias.

A globalização será o maior desafio ético alguma vez colocado à economia mundial?

Não tenho qualquer dúvida disso. E acho que é o maior desafio, não só para a economia, mas também para o Planeta em geral, esta casa de todos nós que nem sempre é tratada como deveria. Contudo, é um desafio difícil de vencer, porque na economia global são muitas as tentações de fazer curto-circuito e de explorar circunstâncias que são claramente erradas do ponto de vista ético. Veja o caso da recente Cimeira União Europeia/África, que juntou um conjunto de pessoas que, se fossem analisadas pelo seu currículo, não ficariam bem na fotografia… Mas os caminhos de hoje em dia são muito mais os da tentativa de conseguir fazer uma via de conversão, do que a via do isolamento, que já demonstrou não ser uma via efectiva de conseguir resultados concretos. No entanto, ainda estamos muito longe de conseguir retirar para uma parte importante da população os benefícios da globalização a que legitimamente tem direito. Até isso acontecer, continuaremos a conviver com situações extraordinariamente dolorosas de sofrimento humano e com tratamentos menosprezadores à cabeça da dignidade da vida humana, porque ainda vivemos num planeta onde o valor da vida humana tem tratamentos completamente díspares conforme os continentes. Eu tenho a certeza de que o caminho que se está a percorrer é o caminho correcto só que, provavelmente, todos nós gostaríamos que fosse percorrido a uma velocidade diferente.

No entanto, verificamos que há empresas multinacionais com uma prática muito correcta na Europa ou nos Estados Unidos da América mas que, uma vez na Índia ou na China, acabam por compactuar com essas situações que não dignificam a vida humana e o trabalhador e, inclusivamente, até com o trabalho infantil. Como é que sairemos desta situação?

Um comportamento ético por parte das multinacionais – muitas delas estão a percorrer esse caminho – resolverá algumas dessas questões, mas não as resolve todas. Contudo, se existir uma estratégia de desenvolvimento de médio e longo prazo e não estratégias de curto prazo, unicamente para sacar aquilo que a história do colonialismo tão claramente documenta e conhecendo eu multinacionais com preocupações genuinamente autênticas em códigos de ética transcritos para os estatutos dessas empresas e para a sua forma de governação, acredito que, com o alargamento desses exemplos, iremos no bom caminho. Aliás, na China e na Índia, onde ainda subsistem situações de enorme sofrimento humano e de desigualdade, a verdade é que a convicção, os números e as estatísticas apontam no sentido de que a economia global tem feito alguma coisa a favor dessas zonas menos desenvolvidas, embora não seja ainda muito claro quem são os beneficiários directos desse desenvolvimento. Mas na medida em que esse desenvolvimento vai criando mercados e vão surgindo classes médias nesses países, há uma alteração bastante profunda do panorama geral.

A ACEGE está a dar os primeiros passos aqui nos Açores. Com que objectivos?

A ACEGE aqui nos Açores tem como objectivos fundamentalmente promover a discussão à volta de temas como a ética e a responsabilidade social, dos quais os Açores não podem ficar à margem. A minha herança genética é 50 por cento açoriana e até por aí me parece que os Açores estão longe, vistos do continente. Também por más razões, se calhar a Madeira está mais próxima em termos de comunicação social, por alguma da componente circense que ali acontece… Isso não acontece nos Açores, que são mais comedidos, mais introvertidos. Mas acho que os Açores e os açorianos têm eles próprios que lutar um pouco pelo seu lugar, não só em termos de Portugal, como parte muito importante do País, mas também fazendo parte de projectos nacionais que temos a obrigação de desenvolver, como é o caso de um novo paradigma de desenvolvimento centrado no mar. Porque na tremenda competitividade que a economia global introduziu no Século XXI, nós teremos de ser especialistas nalguma coisa para sobreviver, porque se não o formos, não teremos lugar como generalistas. Temos que ser bons a nível global para conseguirmos aquilo que outros povos conseguem e que não há nenhuma razão para não sermos capazes de o fazer. É aí que eu sinto a falta de perspectiva para os Açores, em parte pela ausência de projectos, em parte pela dependência que sempre existe nessa matéria em relação ao continente, desde logo e numa parte importante, pela dependência orçamental. Acho que os Açores deveriam ser um pouco mais agressivos e contestatários – longe da componente circense – no sentido de dizer que, mesmo a esta distância, “nós estamos aqui e temos capacidade para nos afirmarmos na economia global do Século XXI”.

Do sector dos vinhos ao futebol

José Roquette é licenciado em Economia pela Universidade do Porto. É presidente de um grupo de empresas com operações em Portugal, África e Brasil, onde se destaca a Finagra e a Prime Drinks. É membro do Conselho de Patrocinadores da ACEGE – Associação Cristã dos Empresários e Gestores, assumindo as funções de coordenador do Código de Ética da ACEGE e a presidência do Portal VER – Valores, Ética e Responsabilidade. Foi Presidente do Sporting Clube de Portugal. Esteve na passada terça-feira em Ponta Delgada, onde proferiu uma conferência sobre a “Ética e a Responsabilidade Social das Empresas”.

Rui Jorge Cabral

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