Mensagem do Cardeal D. José Policarpo para a Quaresma de 2008

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1. O Santo Padre Bento XVI dirigiu a toda a Igreja a sua Mensagem para esta Quaresma. Compete-me a mim concretizá-la para a Igreja de Lisboa, tendo em conta as suas características, dinamismos e fragilidades, anseios e dificuldades, no contexto das opções prioritárias da nossa acção pastoral.

O desafio global que cada Quaresma nos apresenta é assim enunciado pelo Santo Padre: “A Quaresma oferece-nos uma providencial ocasião para aprofundar o sentido e o valor da nossa identidade de cristãos, e estimula-nos a redescobrir a misericórdia de Deus, a fim de nos tornarmos, por nossa vez, mais misericordiosos para com os irmãos”.

Este desafio com que abre a sua Mensagem completa-o nas palavras com que a encerra: “Que este período se caracterize, portanto, por um esforço pessoal e comunitário de adesão a Cristo para sermos testemunhas do seu amor”.

Este é o objectivo único de toda a acção pastoral orientada para o crescimento da Igreja, Povo do Senhor: converter-nos a Jesus Cristo, segui-l’O como discípulos, abrir-nos ao amor que Ele nos comunica e que conduzirá toda a nossa vida.

Esta é a função da “iniciação cristã”, que alarga o horizonte da inteligência e do coração para aderirmos mais radicalmente a Jesus Cristo, à vida que Ele nos oferece, aos caminhos de fidelidade que Ele nos sugere. A nossa Igreja diocesana tem de insistir neste caminho da “iniciação cristã” para todos os baptizados, através da catequese, da Palavra de Deus, da celebração dos sacramentos e sua preparação, de modo particular aqueles que, por serem basilares, a Igreja chama “sacramentos da iniciação cristã”: o Baptismo, a Confirmação, a Eucaristia.

Independentemente dos grupos em que estamos inseridos e dos processos em que participamos, a Quaresma pode ser, para cada cristão, em Igreja, um tempo de aprofundamento deste essencial cristão, para que a Igreja seja, cada vez mais, um Povo de discípulos de Jesus.

Esta caminhada pessoal é feita em Igreja e através dos meios que esta nos oferece. Mas pode e deve ter a verdade e a autenticidade da nossa vida pessoal. Quero indicar a todos, como atitudes fundamentais a aprofundar, a conversão e o cultivo da fé, da esperança e da caridade.

A Conversão
2. A realidade do pecado tem vindo a ser relativizada na consciência dos cristãos e na cultura que nos envolve, o que diminui o sentido da necessidade e da urgência da conversão. Trata-se de uma ilusão perigosa: não vencer o pecado no nosso coração, impede verdadeiramente que o abramos para novos horizontes do sentido da vida, da felicidade, do amor e da verdade fundamental da nossa relação com Deus: glorificá-l’O e amá-l’O sobre todas as coisas, para podermos rezar com verdade a oração que o Senhor nos ensinou: “seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu”.

O pecado é manifestação da autonomia do homem em relação a Deus, autonomia da nossa vontade, da nossa liberdade, do discernimento que fazemos das diversas realidades que temos de enfrentar. Porque não vive a sua vida em relação com Deus, o homem decide-a como se Deus não tivesse nada a ver com ela. Podemos dizer que acreditamos em Deus, mas não estamos dispostos a viver com Ele em todos os momentos da nossa vida, escutando-O, contando com a força do Seu amor, louvando-O, procurando sintonizar a nossa vontade com a d’Ele.

É por isso que a conversão é, antes de mais, uma conversão a Deus e ao Seu Filho Jesus Cristo: “Convertei-vos ao Senhor vosso Deus”. Significa uma abertura do coração à presença e acção de Deus na nossa vida, que influencia tudo e marca um ritmo novo. É um caminho que supõe coragem e decisão, humildade e obediência ao Espírito, purificação da vontade e dos desejos, para que o principal desejo da nossa vida seja o desejo de Deus e do Seu amor.

Esta Quaresma é ocasião para, cada um de nós, avaliar a realidade do pecado na sua vida, e encetar o caminho da conversão, do regresso a Deus.

A Fé
3. A fé é a atitude decisiva e constitutiva da existência cristã: quando ela falha ou enfraquece, tudo falha ou se relativiza. É uma atitude do coração, que envolve a inteligência e a vontade, que se abandona totalmente, na confiança, a Deus que Se nos manifestou. Foi por isso que, desde o início do cristianismo, homens e mulheres mudaram radicalmente a sua vida, deixaram tudo e seguiram Jesus.

No centro desta atitude está a presença irrecusável do Deus vivo, através do Seu Filho Jesus Cristo. Antes de ser um programa de vida, a fé é uma obediência de amor. “A Deus que Se nos revela é devida a obediência da fé”, diz o Concílio (cf. Dei Verbum, nº 5). A fé é a principal atitude que Deus nos pede e é, na sua génese, um acto de adoração de Deus.

Nesta Quaresma, devemos escutar o Senhor, e estar atentos aos meios pelos quais Ele normalmente se revela e nos manifesta a Sua vontade: a Palavra de Deus, a Liturgia, os acontecimentos da vida, sobretudo os relacionados com o sofrimento dos nossos irmãos.

Este ano está particularmente marcado por uma atenção particular à Palavra de Deus: um Sínodo sobre a Palavra, o Ano Paulino. As minhas Catequeses Quaresmais serão, este ano, sobre a Palavra de Deus. Lembro-vos aqui os temas, já anunciados:

1º Domingo: O Verbo eterno e o silêncio de Deus
2º Domingo: O Verbo eterno de Deus encarna na palavra humana: carisma profético
3º Domingo: A Fé e a escuta da Palavra de Deus
4º Domingo: A Escritura e a Igreja
5º Domingo: A Palavra rezada


Domingo de Ramos: Em Cristo o Logos eterno e a palavra profética coincidem

Lembro que a Palavra da Escritura e a Palavra da Igreja são apenas meios, de certo modo sacramentais, que nos podem levar à escuta da Palavra do Deus vivo, o seu Verbo eterno. A falta da conversão do coração e a dispersão do momento podem impedir que a Palavra escutada ou proclamada não nos leve a escutar, na intimidade, a Palavra viva de Deus. Esta é sempre uma descoberta e uma surpresa, que nos mobiliza de novo para vivermos com Deus, em comunhão com Ele.

A Liturgia, a oração pessoal, a partilha fraterna, o empenho na evangelização, são circunstâncias que proporcionam uma nova escuta da Palavra de Deus. A fé é o quadro de todo este processo da escuta da Palavra de Deus. Como diz São Paulo, a salvação é um caminho que vai da fé à fé (cf. Rom. 1,16). Ela acompanhar-nos-á até ao limiar da eternidade, e inclui desde já a vivência da caridade e da esperança, atitudes constitutivas de um caminho de salvação. Como expressões da fé, elas são ainda “as primícias” de uma plenitude definitiva.

A Caridade
4. Já vimos que a fé é, em si mesma, uma expressão da caridade enquanto acto de adoração e de louvor de Deus. Amar a Deus sobre todas as coisas e cada vez melhor, será exigência contínua da fé. Não há autêntica vida de fé sem adoração e louvor a Deus.

Mas a partir do amor de Deus, a fé abre-nos para o amor dos irmãos. Viver em Igreja é desafio de viver, com os irmãos, em comunhão de amor. Não se pode, com verdade, amar a Deus que não se vê, se não amarmos os irmãos que vemos e que Deus ama.

O Santo Padre convida-nos, nesta Quaresma, a concretizar este amor fraterno na “esmola” como partilha do que temos e somos. A “esmola” de quem pode partilhar, supõe a pobreza do coração para saber partilhar. Dar aos pobres só é expressão da caridade se tivermos “um coração de pobre”.

A nossa Diocese continuará a partilhar, através da “Renúncia Quaresmal”, com as Igrejas pobres que batem à nossa porta. Em documento anexo informamos a Diocese dos pedidos atendidos durante o ano de 2007. Outros vão chegando e começam a ser analisados.

Não os conhecemos, mas continuaremos a partilhar. O dar a quem não se conhece é expressão do silêncio que o Senhor aconselha a quem dá. Desses irmãos longínquos e desconhecidos, não estamos à espera de nada em troca. Mas isto não nos dispensa de estarmos atentos aos irmãos que vivem a nosso lado.

A Esperança
5. O Santo Padre Bento XVI, na sua recente Encíclica “Spe Salvi”, mostrou-nos bem que a fé inclui a esperança, citando a Carta aos Hebreus: “A fé é a garantia dos bens que se esperam e a prova das realidades que não se vêem” (Heb. 11,1). A fé leva-nos a experimentar a comunhão com Deus e a perceber que só em Deus pode estar o nosso futuro. Aquilo que experimentamos é aquilo que esperamos em plenitude.

A fé purifica os nossos desejos, de vida, de felicidade, arranca-os ao horizonte fechado das coisas terrestres. Quando sentimos que o nosso futuro só pode estar na comunhão com Deus, alargamos o horizonte dos nossos desejos para além deste mundo, para a vida eterna.

A Quaresma é tempo de análise da nossa esperança. Não estará o nosso coração demasiadamente fixado nos bens deste mundo? Acreditamos e desejamos a vida eterna? Só assim poderemos celebrar a Páscoa como a festa da vida, o abrir definitivo do horizonte da verdadeira esperança. A esperança limitada aos horizontes deste mundo não responde aos mais profundos anseios do coração humano. Se esperamos apenas os bens deste mundo não valia a pena Cristo ressuscitar e de nos ressuscitar com Ele.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2008, Festa da Apresentação do Senhor.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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