No final de Janeiro, a UNICEF lançou o maior apelo de sempre: angariar financiamento na ordem dos 3,1 mil milhões de dólares, para garantir auxílio a 62 milhões de crianças em risco. Com o agravamento de conflitos armados em várias regiões do mundo e a devastação do Ébola na África Ocidental, 2014 revelou-se um ano negro para a infância. A intervenção requer agora uma abordagem assente numa “revolução inovadora”
POR GABRIELA COSTA
“O lugar onde uma criança nasce não deveria determinar o seu destino”
Mas determina. Actualmente, mais de uma em cada dez crianças no mundo vive em países e zonas afectadas por conflitos armados. Do total, a nível mundial (2,3 mil milhões de crianças), 15% são forçadas a trabalho infantil.
Mais de 80% dos meninos ou meninas com idades entre os dois e os 14 anos foram submetidos a disciplina violenta, em metade dos países sobre os quais o relatório da UNICEF The State of the World’s Childrendisponibiliza informação.
Cerca de 20% dos mais pobres – especialmente em zonas rurais – têm o dobro das probabilidades, comparativamente aos mais ricos, de sofrer um atraso no crescimento devido a subnutrição, e de morrer antes de completar cinco anos de idade. E a verdade é que, só em 2012, cerca de 6,6 milhões de crianças com menos de cinco anos morreram, devido a causas evitáveis.
Também em 20% dos casos, as crianças mais carenciadas do mundo têm 2,6 vezes menos hipóteses que as ricas de nascer com o acompanhamento de um profissional de saúde qualificado.
Nos países em desenvolvimento, quase nove em cada 10 crianças que residem nos bairros mais ricos frequentam o ensino básico, contra apenas seis em 10, nos bairros pobres. Na África subsaariana, a possibilidade de as crianças pobres frequentarem a escola primária diminui 4,5 vezes, face às ricas. Já na Ásia meridional, quase uma em cada três meninas adolescentes está actualmente casada.
Podíamos escrever todo este artigo só com números. Infelizmente, a lista mundial da vergonha que grassa pelos quatro cantos do mundo – e se instala nuns, mais do que noutros – no que diz respeito aos direitos mais básicos da Criança, é interminável. E desumana. A necessidade de acção humanitária para auxiliar os mais pequenos, apanhados sem qualquer protecção em guerras violentas, crises políticas e sociais, catástrofes naturais ou epidemias, não pára de aumentar.
Acção humanitária à escala dos conflitos
“Perante uma nova geração de crises humanitárias” a UNICEF lançou no final de Janeiro o maior apelo de sempre, com o objectivo de ajudar mais crianças em situações de emergência: 3,1 mil milhões de dólares (mais mil milhões de dólares do que em 2014), para garantir as necessidades de financiamento inerentes ao auxílio a 62 milhões de crianças em risco.
O Humanitarian Action for Children 2015 integra informação sobre 71 países e zonas em destaque “devido à escala dessas crises, à urgência do seu impacto sobre crianças e mulheres, à complexidade da resposta, e à capacidade de resposta”, divulga a agência das Nações Unidas dedicada à defesa dos direitos dos mais novos. O apelo visa abranger um total de 98 milhões de pessoas, das quais cerca de dois terços são crianças.
É urgente encontrar soluções locais para os crescentes desafios colocados às crianças mais vulneráveis
Alertando que, quer cheguem às notícias dos jornais, quer “aconteçam longe dos olhares, as emergências provocadas por fracturas sociais, alterações climáticas e doenças estão a atormentar as crianças de maneiras nunca antes vistas”, Afshan Khan, directora dos Programas de Emergência da UNICEF manifesta-se preocupada com o facto de elas estarem expostas a uma nova vaga de “catástrofes naturais mortíferas, conflitos brutais e epidemias galopantes”: “cada vez mais crianças se vêem confrontadas com conflitos crescentemente complexos e destrutivos”, e com emergências como a epidemia de Ébola, “que estão a colocá-las em grande perigo de violência, fome, doença e abusos”.
Voltemos ao princípio. Mais de uma em cada dez crianças no mundo – ou seja 230 milhões – vive, actualmente, em zonas afectadas por conflitos armados. Como testemunha a directora dos Programas de Emergência da UNICEF, de regresso da Síria e do Líbano, países “onde a vida de milhões de crianças sofreu rupturas” nos últimos quatro anos, não existem condições básicas de vida para estes pequenos seres humanos, privados de tudo e obrigados a assistir “diariamente a actos de violência e de morte”.
Para fazer face aos enormes desafios são necessários cada vez mais recursos, e precisamente por isso, o apelo de financiamento lançado pela UNICEF “vai ajudar a assegurar um futuro a todas as crianças que sofrem o impacto das crises humanitárias”, espera Afshan Khan.
Síria e Ébola, os maiores inimigos
A maior fatia do apelo Humanitarian Action for Children 2015 destina-se à Síria e respectiva sub-região. A UNICEF precisa de 903 milhões de dólares para a resposta regional, de modo a poder garantir a protecção das crianças em risco e prestar assistência crucial, nomeadamente através de imunização, água potável e saneamento, e educação, divulga a organização.
Em segundo lugar, na lista de prioridades da acção humanitária para as crianças, está a angariação de 500 milhões de dólares com vista a acelerar o trabalho da UNICEF no seio das comunidades afectadas pelo vírus Ébola. Esse montante servirá para incrementar os esforços no sentido de isolar rapidamente e tratar cada caso, prevenir surtos futuros, e continuar a promover comportamentos seguros, a fim de prevenir a propagação da doença. Em 2015, o objectivo “é chegar a zero casos e dar apoio à revitalização de serviços sociais básicos”.
Segue-se a Nigéria, onde se registou em 2014 uma escalada de ataques por parte de grupos armados, “que levou a que mais de um milhão de pessoas no Nordeste do país abandonassem as suas casas”. A UNICEF está a pedir 26,5 milhões para auxiliar estes deslocados.
“Não se trata de acção humanitária imediata. Os investimentos fomentarão ganhos a longo prazo”
Após um ano de conflito na Ucrânia, a organização está também a apelar à angariação de 32,45 milhões de dólares para intervir na crise humanitária que o país enfrenta: “5,2 milhões de pessoas vivem nas zonas de conflito, mais de 600 mil tornaram-se deslocados internos e são cerca de 1,7 milhões as crianças afectadas”.
O apelo da UNICEF inclui ainda crises “marcadamente sub-financiadas e esquecidas, nas quais as crianças têm enormes carências”, incluindo o Afeganistão (35% de financiamento, em 2014), o Estado da Palestina (23%, em 2014) e o Níger (35%, no mesmo período).
Face às necessidades globais dos programas humanitários da UNICEF, e considerando o total de pessoas a que pretende chegar (quase cem milhões, das quais mais de 60 milhões são crianças), a organização prevê atingir os seguintes resultados, em 2015 – para os quais necessita, como referido, de 3,1 mil milhões de dólares: tratar 2,7 milhões de crianças que sofrem de má nutrição aguda; vacinar 13,6 milhões de meninos e meninas contra o sarampo; dar acesso, a 34,3 milhões de crianças, a água potável, saneamento básico e condições de higiene e de alimentação; permitir apoio psicossocial a 2,3 milhões de crianças; proporcionar a 4,9 milhões de crianças educação formal e não formal; fazer chegar a 257 mil pessoas informação, testes e tratamento contra o HIV/Sida; e prestar apoio financeiro a 395 mil pessoas.
Para além da resposta humanitária imediata, os fundos angariados deverão permitir à UNICEF, em conjunto com organizações parceiras, “preparar os países para catástrofes futuras através do reforço dos sistemas nacionais de preparação e da capacitação das comunidades para que se ajudem a si próprias”.
2014, um ano negro para a infância
O ano passado foi devastador para a infância, a nível mundial. Com perto de 15 milhões de crianças afectadas pela violência dos conflitos na República Centro-Africana, no Iraque, no Sul do Sudão, na Palestina, na Síria e na Ucrânia, 2014 foi também o ano em que o Ébola deixou pelo menos 5 milhões de crianças, entre os três e os 17 anos, impedidas de regressar à escola. E milhares sem pai, mãe, ou ambos, devido à doença.
Com o agravamento dos conflitos acompanhado por uma maior consciencialização sobre o seu tremendo impacto na infância, o ano passado foi ainda aquele em que os donativos choveram e o financiamento humanitário alcançou níveis nunca antes conseguidos pela UNICEF. O valor angariado ultrapassou 1670 milhões de dólares, no final de 2014.
As necessidades humanitárias cresceram exponencialmente, mas a organização conseguiu prestar apoio a milhões de crianças – incluindo a vacinação de 16 milhões de crianças contra o sarampo; o tratamento de 1,8 milhões de crianças com a mais grave forma de má nutrição; o apoio psicológico prestado a perto de dois milhões de crianças e o acesso a água potável proporcionado a 13 milhões de pessoas. De sublinhar ainda que dois milhões de meninos e meninas passaram a ter acesso a uma melhor educação, a qual a UNICEF considera “parte crucial” da sua resposta de emergência, “pois ajuda as crianças a recuperar rotinas e a ter esperança no futuro”.
Explicando que é preciso “levar serviços e cuidados cruciais” àquelas que têm actualmente carências urgentes, “de modo a proporcionarmos os elementos construtivos que lhes permitirão criar um futuro pacífico”, a directora dos Programas de Emergência da agência da ONU esclarece que “não se trata apenas de acção humanitária imediata, pois estes investimentos a curto prazo fomentarão ganhos a longo prazo.”
Há 25 anos, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Para assinalar os importantes progressos ainda assim alcançados, e não baixar os braços face às múltiplas dificuldades anunciadas no que ao estado mundial da infância diz respeito, a UNICEF dedica a edição de 2015 do seu relatório The State of the world’s Children a uma abordagem renovada na resolução dos velhos problemas que afectam milhões de crianças vulneráveis em todo o mundo. Uma revolução inovadora, mapeada de forma interactiva no relatório em formato digital, para quebrar barreiras e encontrar soluções locais para os muitos desafios colocados às crianças nos países mais pobres.
Porque, como defende a directora dos Programas de Emergência da UNICEF, “o lugar onde uma criança nasce não deveria determinar o seu destino”. Mas determina.