O Papa que celebrou, esta quarta-feira, o seu 78º aniversário, mantém a sua energia arrebatadora e inspiradora. Sem temas tabus, aposta na simplicidade e na proximidade, “praticando”, com fervor, a máxima da inclusão e do não julgamento. O ano de 2014 foi particularmente trabalhoso para o chefe do Vaticano: continuamente atento aos mais vulneráveis, não deixou, por isso, de emitir a sua opinião, sempre assertiva, sobre os variados desafios que a humanidade enfrenta
Por HELENA OLIVEIRA
Em 1988, e pouco antes da queda do Muro de Berlim, o Papa João Paulo II visitaria o Parlamento Europeu e apelidaria a Europa de “o farol da civilização”. Mais de um quarto de século mais tarde, cerca de 700 eurodeputados assistiram, no mesmo local, a um discurso completamente diferente, com uma tónica implacável e nada animadora. Numa oratória devotada à centralidade da dignidade humana, o actual Sumo Pontífice não foi brando nos epítetos que dedicou à Europa e aos seus decisores políticos: à primeira, chamou-a de “avó extenuada” e aos segundos atacou a sua “mente funcionalista e privatizada”.A visita de Francisco ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, no passado dia 25 de Novembro, em conjunto com as palavras duras que proferiu, em pouco diferem de outras visitas e outros discursos nos quais o Papa – apesar de não esquecer o papel de responsabilidade e de esperança que deve representar no mundo – não se coíbe de dizer o que pensa e de acusar todos aqueles que colocam os seus próprios interesses à frente dos de outrem. Sem pruridos, o primeiro Papa não-europeu em 1200 anos não foi brando em relação à União Europeia, acusando-a de “estar refém de um modelo económico uniformizado que enfraqueceu a democracia”, enquanto a centralidade dos direitos humanos se tornou difusa “e foi largamente suplantada pelo narcisismo individualista”. Francisco alertou ainda os representantes da Europa relativamente à forma como o Velho Continente é encarado pelo resto do mundo, com “indiferença, desconfiança e suspeição”. E, mais uma vez, recordando a sua primeira visita enquanto chefe do Vaticano, a Lampedusa, a pequena ilha no sul de Itália que se tornou, ao longo da última década, num dos principais pontos de entrada de dezenas de milhar de migrantes e na qual criticou veementemente o mundo “rico”, acusando-o de uma “globalização da indiferença”, o Papa voltou a alertar para o facto de não ser possível continuar-se a permitir que o Mediterrâneo se transforme num “imenso cemitério”.Ainda sobre uma Europa que deixou de ser “fértil e vibrante”, o Papa teve também uma palavra a dizer não só sobre as suas actuais políticas de imigração, mas também sobre as hordas de jovens desempregados, os maus tratos infligidos aos idosos e a incapacidade que os seus líderes parecem ter em reconhecer o fracasso que tem sido, em particular nos últimos anos, o denominado “projecto europeu”. “Unidade não significa uniformidade”, declarou, ao mesmo tempo que denunciava os “sistemas uniformes de poder económico ao serviço de impérios invisíveis” e de ter afirmado que “as grandes ideias que outrora inspiraram a Europa parecerem ter perdido a sua atracção, para serem substituídas pelas tecnalidades burocráticas das suas instituições”.
Um 2014 “sem papas na língua”
O ano prestes a terminar foi, para Francisco, laborioso e “palavroso”. Sempre atento não só às necessidades dos mais vulneráveis, mas também aos grandes desafios globais a que o mundo está sujeito, poucos foram os “temas do ano” que não mereceram comentários do actual Sumo Pontífice, ao mesmo tempo que poucos foram aqueles que não se renderam ao seu carisma, entre crentes e não crentes.
A 29 de Janeiro, por exemplo, muitos habitantes de Roma acordaram com um novo grafitti numa das suas ruas que mostra o Papa Francisco desenhado como um super-herói, ao verdadeiro estilo do super-homem, com a sua capa e um crucifixo “ao vento” e com uma mala preta com a palavra VALORES “bordada”. Assinada pelo famoso artista de rua Maupal (Mauro Pallotta) – o qual a justificou com a forma como Francisco utiliza a sua autoridade papal para “disseminar o bem” -, a imagem foi tema de um tweetenviado pelo próprio gabinete de comunicação do Vaticano, tornando-se rapidamente viral e chegando aos quatro cantos do mundo. [O próprio Papa tem uma conta no Twitter, onde é seguido por 17 milhões de pessoas]
Todavia, seguir todos os temas sobre os quais Francisco emitiu cruas opiniões ao longo de 2014 é uma longa viagem, com vários cenários e múltiplas personagens envolvidas. A “revolução interna” que provocou no interior do Vaticano, constituindo, por exemplo, o Conselho de Cardeais (o denominado “C9”), que reúne periodicamente para o ajudar na reforma da Cúria Romana, tendo-se já pronunciado sobre as questões financeiras do Vaticano – uma das suas grandes lutas – e que levou à criação de uma Secretaria da Economia, foi já reconhecida por inúmeros organismos e personalidades. A título de exemplo, o Moneyval, o órgão de controlo do Conselho da Europa contra a lavagem de dinheiro e financiamento de actos terroristas (apesar de não ser este o caso), aplaudiu publicamente os “significativos esforços do Vaticano para incorporar os padrões internacionais e o seu compromisso com a transparência financeira”. Também o Sínodo dos Bispos sobre a Família – o qual obteve um enorme mediatismo – consistiu (e ainda consiste) numa importante e gigantesca “tarefa” à qual o Papa se dedicou, sempre baseado na premissa de que a Igreja deve ser de “acolhimento” e não “de exclusão”.
Por outro lado, os avisos que disparou ao longo do ano não pouparam os líderes políticos – encorajando-os a viver “entre as pessoas” e a agir em nome do seu bem-estar -, nem os representantes da ONU, exortando-os a combater a “cultura de morte” e a “economia da exclusão”. Enviou cartas aos participantes de uma conferência internacional sobre lei criminal, pedindo-lhes que reconsiderassem a sua própria definição de justiça, a qual fosse mais além do que o mero castigo; criticou, de forma dura e numa das suas homilias, a desonestidade e violência perpetrada pelos membros da Máfia, um dia antes de uma viagem ao seu “centro” nevrálgico – na Calábria – ignorando os alertas de atentados à sua própria vida, depois de já ter denunciado, por várias vezes, os “senhores” da Máfia italiana, acusando-os de serem “adoradores do diabo”; tem sido uma das vozes mais críticas e com eco no que respeita aos que usam a religião com objectivos terroristas; avisou, igualmente e também numa homília, os crentes que “reduzem a sua fé a questões de moralismo e ambição”, afirmando que no tempo de Jesus, os seus seguidores foram muitos ,pois falava a verdade de uma forma compreensível para toda a gente; e obteve uma enorme cobertura mediática quando afirmou que “Deus é um criador e não um mágico”.
A luta pelo diálogo inter-religioso
O gesto foi inesperado e espontâneo e a fotografia correu mundo: na sua visita à Terra Santa, em Maio deste ano, o Papa parou para rezar diante do muro que simboliza a divisão que perdura entre judeus e palestinianos. Para além do enorme simbolismo que ficará para sempre associado a este gesto, Francisco foi novamente pioneiro no convite que dirigiu ao presidente israelita, Shimon Perez e ao seu homólogo Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestiniana, para visitarem o Vaticano e, em conjunto, rezarem pela paz. O encontro histórico teve lugar em Junho e foram muitos os observadores internacionais que se mostraram confiantes nos frutos que esta reunião inédita pudessem vir a dar. Todavia, e cerca de um mês mais tarde, quando se voltaram a intensificar os confrontos em Gaza, Francisco fez um telefonema pessoal aos dois líderes em causa, voltando a pedir novos esforços para a paz entre israelitas e palestinianos, a qual teima em não acontecer. “Onde há um muro, há um coração fechado. Precisamos de pontes, não de muros”, voltaria a afirmar, desta feita numa homilia e a propósito da celebração dos 25 anos da queda do Muro de Berlim.
A “construção de pontes” é, aliás, uma das “especialidades” do Santo Padre. Os seus esforços para fazer do diálogo inter-religioso uma realidade têm sido uma constante desde o início do seu pontificado. Na recente visita que fez à Turquia e depois de um encontro com o presidente Tayyip Erdogan, afirmou: “O diálogo inter-religioso e intercultural pode dar um contributo importante para que se acabe com todas as formas de fundamentalismo e de terrorismo”. No mesmo discurso, evocou, apesar de não citar explicitamente, o grupo extremista Estado Islâmico (EI), considerando que a “a solidariedade de todos os crentes” pode “inverter a tendência” de uma “violência terrorista” que, “na Síria e no Iraque, em particular, não dá sinais de diminuir”, traduzindo-se na “violação das leis humanitárias mais elementares” ou em “graves perseguições de grupos minoritários”. No segundo dia da viagem à Turquia, e já em Istambul, o Papa visitou a Mesquita Azul, onde se descalçou e, virado para Meca, se manteve em “adoração silenciosa” (tal como já havia feito Bento XVI). A 3 de Dezembro último, na 3ª Cimeira de Líderes Católicos e Muçulmanos, elogiou o trabalho dos representantes católicos e muçulmanos, “para que os fiéis das duas religiões se possam entender melhor, a favor da paz”.
A particular atenção aos desafios globais
Considerado por muitos como um verdadeiro “fenómeno global”, o Papa Francisco tem sido, igualmente, um interveniente atento nos denominados “problemas que afectam o mundo global”. Um deles é o do tráfico humano, ao qual o chefe do Vaticano deu particular atenção ao longo de 2014. Considerando o mesmo como uma nova forma de escravidão e que afecta os mais vulneráveis em particular, foi também uma das questões consideradas “mais urgente” para figurar no encontro privado que teve com Obama, no Vaticano, no qual aproveitou para falar igualmente sobre a reforma das leis de imigração dos Estados Unidos, outra temática para a qual alerta muitas vezes.
Na habitual mensagem para o Dia Mundial da Paz (já para o dia 1 de Janeiro de 2015), Francisco dedica uma particular atenção ao que denomina como As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje, evocando não só as suas inúmeras vítimas, mas também as suas “causas mais profundas”, que incluem “a pobreza, o subdesenvolvimento e a exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego”. Sobre o mesmo tema, o Papa acrescenta várias das suas outras “lutas”, de que são exemplo “a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo” , afirmando também que (…)”isto acontece quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana”.
A frase que se viria a tornar também “viral” – “a economia que mata” – proferida em “A Alegria do Evangelho”, a Exortação Apostólica publicada em Novembro de 2013, remete para a denúncia do actual sistema económico, “porque prevalece a lei do mais forte”, outra questão que Francisco tem vindo continuamente a alertar.
O mesmo acontece com as alterações climáticas e as questões ecológicas e da sustentabilidade do planeta. A este propósito, e depois de várias intervenções ao longo do ano sobre as mesmas, na recente conferência sobre o clima, que teve lugar em Lima, no Peru, o Papa enviou também uma mensagem, endereçada aos líderes mundiais, alertando que o “tempo se está a esgotar”, que as decisões (ou a ausência delas) terão repercussões graves em toda a humanidade, “particularmente para os mais pobres e para as gerações futuras”. Aos “senhores do mundo”, Francisco recorda a sua “responsabilidade ética e moral”, bem como a urgência de respostas que “superem interesses e comportamentos particulares”.
Tal como o próprio afirmou, numa entrevista concedida ao Corriere della Sera, a 5 de Março [e republicada pela revista Visão a 20 de Março], sobre o balanço do seu primeiro ano de pontificado: “Descrever o Papa como uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo. O Papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos como toda a gente. Uma pessoa normal”.
Sim, uma pessoa normal, mas um Papa “global”, atento, interventivo, inclusivo e, em particular, muito “humano”.