Espiritualidade e Gestão Podem Ser Compatíveis

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João Pedro Tavares - Presidente da ACEGE
Do programa da ACEGE na RTP2 com João César das Neves, João Pedro Tavares, José Luis Ramos Pinheiro e José Miranda Clara ficou claro que espiritualidade e empresa não têm de ser incompatíveis e que há organizações que têm a preocupação de oferecer aos seus colaboradores o espaço necessário para estes satisfazerem as suas necessidades espirituais

Por Cristina Pereira – PE                     

Haverá lugar para a espiritualidade dentro das empresas? À primeira vista, estas duas realidades parecem ser incompatíveis, em virtude da vertente marcadamente material que caracteriza a actividade das empresas. No entanto, há organizações que se preocupam com esta temática e que tentam proporcionar aos seus colaboradores o espaço necessário para desenvolverem a sua espiritualidade. Daí que a Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) e o canal Dois da RTP tenham decidido colocar a questão em debate no Programa “Causas Comuns”, no passado dia 10 de Novembro. O professor João César das Neves, José Luís Pinheiro, gestor da Rádio Renascença, José Miranda Clara, director de Recursos Humanos da Xerox, e João Pedro Tavares, administrador da Accenture, moderados pela jornalista Fernanda Freitas, foram os protagonistas do debate.

“Se há pessoas que estão com problemas espirituais só pode ser nas empresas”. A afirmação foi feita por João César das Neves, que rejeita “a ideia de que existe uma entidade abstracta que se chama empresa”. Porque, na realidade, “nós todos trabalhamos ou consumimos a empresa”, sublinhou. E se este é um mundo “de pessoas normais, que, como todas as pessoas normais, têm problemas espirituais” e que, além disso, passam “a maior parte da sua vida a trabalhar no sítio onde trabalham, é normal que a sua atitude espiritual de fundo se manifeste na sua vida”, defendeu o professor. Assim, “nós somos aquilo que somos e somos onde estamos”. É por esta razão, acrescentou César das Neves, que separar os dois mundos não faz sentido.

Aliar a espiritualidade ao trabalho no terreno

Já no que toca à realidade concreta nas empresas, esta interacção entre o espiritual e o material pode assumir diversas formas. De acordo com José Luís Pinheiro, pode divergir “de empresa para empresa e, sobretudo, de pessoa para pessoa”. Mas o mais importante para o gestor é a forma como se encaram as pessoas, que “são muito mais do que um mero factor de trabalho, um factor de produção”. Não deixando de dar importância à competência e mais-valia técnica dos colaboradores, José Luís Pinheiro ressalvou que são pessoas que têm também “sensibilidade e necessidades de formação humana e espiritual”. Evidentemente que as formas da empresa aliar a espiritualidade ao trabalho podem variar imenso, mas deu alguns exemplos, como a flexibilização dos horários de trabalho, o tipo de condições proporcionadas ou mesmo o não desincentivar “uma busca pelo espiritual que as pessoas podem querer ter, excepto se estiverem 24 horas sobre 24 nas empresas.

Na Xerox, por exemplo, a parte espiritual “é um elemento fundamental”, declarou José Miranda Clara. Na medida em que se considera a empresa como “uma extensão da família”, salientou, “todas as noções de justiça, confiança, o tratamento e o respeito pelo outro estão permanentemente presentes, até porque é isso que todos nós, como colaboradores da companhia, exigimos”, explicou. “Sem dúvida que prestamos uma atenção cuidada a esta componente espiritual”, reforçou.

No caso da Accenture, é já uma realidade na filial brasileira a promoção de retiros espirituais pela própria empresa. Em Portugal, não é bem assim. “Apesar de serem dois países diferentes, com algumas similitudes, a cultura da firma subjacente é a mesma”, explicou José Pedro Tavares. O que se traduz em “criar o espaço para que ele [o indivíduo] esteja de corpo e alma, vista a camisola”, enfim, “que esteja integrado totalmente na empresa”. O que, para o administrador da Accenture, tanto pode ser feito no Brasil, como em Portugal ou na China. Porque “uma empresa com 120 mil pessoas, com escritórios em 50 e tantos países, tem de respeitar o indivíduo com todas as suas diversidades, credos, religiões, opções e estados de vida”, reforçou. O que acontece, no entanto, é que na Accenture Portugal este género de iniciativas não é promovido pela empresa, mas pelos colaboradores. À empresa cabe o papel de criar o espaço, “para que o indivíduo se sinta como um todo”, explicou. Já aconteceu de facto em Portugal que colaboradores da empresa se tenham juntado para participarem neste tipo de retiros. Mas, sublinhou ainda o administrador da Accenture, “não houve uma postura da parte da empresa no sentido de o fomentar”, mas apenas a concessão da “liberdade para as pessoas o fazerem”.

Espiritualidade não é religiosidade

Outra questão levantada no debate foi a de, por vezes, se verificar alguma confusão entre espiritualidade e religiosidade. Para definir uma e outra coisa, César das Neves deu um exemplo, “não da gestão, mas da digestão”, conforme explicou. Para o professor, a espiritualidade é como uma fome: “É a necessidade que o ser humano tem de responder às questões fundamentais da sua vida”, defendeu. A religião, essa, é a comida: “Por isso temos várias culinárias, temos comidas mais picantes e umas mais doces”, explicou. O que acontece é que “algumas pessoas preferem ficar pela fome, petiscando aqui e ali, sem nunca se assumirem com uma cozinha e um restaurante onde gostam de ir”. Outras, pelo contrário, “assumem e entram claramente numa opção”, distinguiu. Mas o professor considera que toda a gente, “mesmo aquelas pessoas que dizem que não têm religião, no fundo colocam esta questão”. Aliás, comentou, muitos “têm uma religião da ciência ou da democracia, entregam a vida a algo maior do que eles próprios e encontram aí a sua razão de ser”

José Miranda Clara também considera que não se deve confundir espiritualidade com religiosidade. Para o responsável da Xerox, quando se fala de espiritualidade fala-se basicamente de bem-estar, do querer estar bem e que os outros também o estejam.

Para César das Neves, a sociedade ocidental apresenta hoje uma espiritualidade desorientada. Isto porque, se desde sempre a religião era encarada como normal e estava presente na vida das pessoas, hoje “passámos para uma situação em que a religião é suposta ser uma coisa privada”, afirmou. As pessoas têm vergonha de mostrar a sua religiosidade aos outros e “ainda por cima os outros olham mal se a pessoa manifesta”, acrescentou. Esta evolução, segundo o professor, prende-se muito “com o facto de que a sociedade ocidental colocou a sua religião no sucesso económico, na ciência, no prestígio”. Em resumo, “as pessoas hoje estão desorientadas”, procuram “qualquer coisa sem saber muito bem como”. É este fenómeno que, segundo César das Neves, explica “as seitas, o misticismo e uma enorme quantidade de outras coisas que são uma espiritualidade desorientada”.

Sem esquecer as preocupações materiais

José Pedro Tavares reforçou a sua ideia de que o espaço para o desenvolvimento da espiritualidade dos colaboradores deve ser criado pela empresa. “A empresa não tem espiritualidade de per si”, explicou. “Tem valores, princípios, cultura, um modelo de negócio e de remuneração dos seus colaboradores”. Não deixando de sublinhar a importância de atender às necessidades materiais das pessoas, o administrador da Accenture insistiu na ideia de que o papel da empresa neste campo é o de criar o espaço “para ter colaboradores motivados” e integrados no espírito de equipa, de comunicação e de colaboração que se impõe.

Importante para João Pedro Tavares é não misturar o aspecto material com o da espiritualidade, isto em resposta a um telefonema de um telespectador que declarou que teria tido mais estímulo no trabalho se tivesse tido um aumento de ordenado. Ideia corroborada por José Luís Pinheiro, que acrescentou que, independentemente das condições de trabalho e tipo de profissão, há muita gente com “uma grande sede de busca de alguma coisa mais elevada que dê sentido àquelas pequenas coisas do dia-a-dia”. Acrescentou ainda que há de facto pessoas que não estão bem com a vida e que “têm problemas pessoais de diversos níveis”. Segundo o gestor da Rádio Renascença, este tipo de pessoas “dificilmente conseguirão ser bons profissionais”. Afinal, lançou, “o que é ser bom profissional se a pessoa não tiver também riqueza humana”?

No entanto, a questão das preocupações materiais também não deve ser descurada, acredita José Luís Pinheiro, que considera que as decisões neste campo devem ser comunicadas aos colaboradores. Segundo o responsável, “há uma grande necessidade de comunicar as decisões dentro da própria empresa” para que as pessoas se sintam respeitadas e que percebam por que é que determinadas aspirações suas não podem ser satisfeitas. Por vezes, assinalou, as razões da empresa “são mais amplas” do que as que dizem respeito a uma determinada pessoa ou ao seu departamento. Daí que tenha reforçado a importância da qualidade da comunicação na organização. “Uma empresa que comunica mal dentro de si é uma empresa que tem de fazer alguma coisa mais para respeitar internamente os seus colaboradores”.