Capitalismo consciente: servir o ecossistema e não o “ego-sistema”

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Lisboa acolherá, no final do mês, a 1ª edição europeia do programa “Conscious Business Journey, o qual tem como objectivo “capacitar os participantes nas técnicas e ferramentas para despertar o lado humano de uma organização, redireccioná-la para a sua causa, ajustada à realidade atual, e criar uma cultura responsável que vive em prol de um propósito maior”. Quem o explica em entrevista ao VER é Thomas Eckschmidt, co-fundador do Capitalismo Consciente Brasil e que escreveu, em parceria com Raj Sisodia – um dos “pais” do movimento com o mesmo nome -, o livro Conscious Capitalism Field Guide: Tools for Transforming Your Organization
POR HELENA OLIVEIRA

O movimento do capitalismo consciente, iniciado pelo académico Raj Sisodia e pelo CEO da gigantesca Whole Foods, John Mackey, está a disseminar-se um pouco por todo o mundo. Depois da teoria vem agora a prática, a qual se traduz num programa que tem como objectivo preparar os líderes de negócios para abraçarem um novo caminho na gestão das suas organizações, que visa ultrapassar a volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade do ambiente empresarial actual.

Pela primeira vez em Portugal, e na Europa, os participantes terão a oportunidade de mergulhar nesta jornada de longo prazo, “aprendendo” a reconceptualizar o que entendem por capitalismo e a perspectivar os seus negócios como uma “força para o bem”. O programa, que já envolveu mais de 630 profissionais em várias partes do mundo, será conduzido por Thomas Eckschmidt, que acredita que os resultados de curto prazo são “a cocaína, o crack dos executivos” e que é responsável pelo movimento do capitalismo consciente no Brasil.

Eckschmidt assegura ainda, em entrevista ao VER, que esta nova abordagem da forma como se fazem negócios assenta numa “liderança servidora”, mais inclusiva e humanizada, e que é capaz de “gerar resultados financeiros até 10 vezes superiores face à média de desempenho de mercado no longo prazo”. Criar um “exército de consultores” que sirva para disseminar os fundamentos deste “novo” capitalismo através de exercícios práticos e técnicas específicas é outra das metas desta “jornada de negócios conscientes”.

 O movimento do capitalismo consciente tem vindo a afirmar-se, em particular, desde o lançamento do livro com o mesmo nome – Conscious Capitalism: Liberating the Heroic Spirit of Business – escrito por John Mackey e Raj Sisodia. Como tem evoluído [o movimento] e que principais marcos gostaria de sublinhar nesta jornada?

O movimento nasceu em 2006 com o lançamento do livro “Firms of Endearment: How World-Class Companies Profit from Passion and Purpose” de Raj Sisodia e com o prefácio de John Mackey. Foi este livro que permitiu o encontro do empresário (Capitalista Consciente) e do Académico (Capitalista Consciente) para dar início a esta jornada do movimento por um capitalismo mais consciente. Desde 2006, já foram realizados 13 encontros de presidentes de empresas (CEO Summit), com o inicial a reunir um grupo de 40, sendo que actualmente e todos os anos, somos já mais de 250.

Eventos abertos ao público já foram dez nos Estados Unidos e mais três noutros locais do mundo, alcançando públicos de quase 1.000 participantes. Hoje existem também várias representações (Chapters) do capitalismo consciente em quase 50 localidades em mais de 10 países.

Em 2018, escreveu, em parceria com Raj Sisodia, o “Conscious Capitalism, Field Guide”. Quais os principais objectivos do livro?

Em 2016, eu escrevi um livro prático de implementação dos princípios do capitalismo consciente em português, devido às “exigências” dos seguidores do movimento no Brasil. Desde 2013 que dava palestras sobre o tema, com o número de participantes a variar entre as 100 e as 500 pessoas. O livro chama-se “Fundamentos do Capitalismo Consciente”, para o qual pedi ao Raj Sisodia para escrever o prefácio. Este livro despertou o interesse de Raj, o qual um mês depois convidou-me para escrever o livro “Conscious Capitalism Field Guide: Tools for Transforming Your Organization” em conjunto com ele para ser editado pela Harvard Business Review Press.

Os objetivos do livro são detalhar o caminho para a implementação dos fundamentos de um capitalismo mais consciente em qualquer organização. São 430 páginas detalhadas de como colocar isso em prática.

Para quem não conhece a filosofia subjacente ao capitalismo consciente, como é que a mesma é definida?

Capitalismo consciente é uma filosofia de negócios baseada numa abordagem sistémica (integração dos stakeholders), onde acreditamos que a prosperidade não resulta de um indivíduo ou de uma organização, mas do ecossistema como um todo. Esta abordagem baseia-se num propósito, numa causa (propósito evolutivo), tendo como base um problema que a organização esteja a resolver para a humanidade. Isto gera um movimento colectivo de todos os envolvidos em prol desta mesma causa (cultura responsável) e começa a partir de uma liderança que serve o ecossistema e não o “ego-sistema” (liderança servidora).

O capitalismo consciente é uma nova maneira de conduzir negócios, mais inclusiva, mais humanizada e capaz de gerar resultados financeiros até 10 vezes superiores do que a média de desempenho de mercado no longo prazo (períodos de 15 anos ou mais). Para deixar claro: esta não é uma abordagem de curto prazo e não pode ser simulada (ser falsa ou fingida).

fiz esta pergunta ao Raj Sisodia, mas gostaria de obter igualmente o seu ponto de vista. Se o Capitalismo Consciente não é “uma estratégia ou um modelo de negócio, mas antes uma filosofia abrangente para se fazer negócios”, de que forma é que uma empresa se pode tornar “consciente”?

Eu acredito que a grande maioria das empresas nascem conscientes. Quando iniciam um empreendimento, a maioria dos empreendedores começa com a ideia de fazer algo melhor – seja um produto, um serviço, ou até mesmo algo melhor para a sua vida, a sua família, a sua comunidade, com os mais altruístas a querer fazer algo que seja melhor para o mundo.

O que acontece então? Os líderes perdem-se. Começam como capitalistas conscientes inconscientes, porque não conhecem este modelo mental de trabalho baseado nos quatro fundamentos [propósito, stakeholder, liderança e cultura]. Quanto mais presente este modelo estiver, mais fácil será manter-se na jornada consciente.

E digo isso por experiencia própria. As duas razões mais comuns devido às quais nos desviamos dessa intenção original devem-se ao facto de, às vezes queremos atender ao nosso ego e, outras vezes, procurarmos dinheiro (resultado financeiro) de curto prazo. Esses são os dois desvios mais frequentes que levam um líder e uma organização a perder-se da jornada consciente.

É possível voltar? Sim. É mais trabalhoso, mas é possível. O livro “Conscious Capitalism Field Guide” explora esse caminho detalhadamente com exemplos, exercícios e práticas para implementação.

Reestruturar o capitalismo e fazer dos negócios uma força para o bem continua a soar mais como um ideal e menos como uma realidade. Como tem sido a adesão das empresas – e tendo em conta o mundo VUCA [o acrónimo em inglês para volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade] em que vivemos – aos princípios por vós defendidos?

Excelente ponto. O resultado de curto prazo é a cocaína, o crack dos executivos. O vicio na gestão de desempenho, o bónus financeiro para a liderança.

Acredito que o mundo VUCA evoluiu para incorporar mais dois elementos, Meaning e Universality: MUVUCA. As novas gerações, cada vez mais, não aceitam trabalhar em empresas que não tenham os princípios de um capitalismo mais consciente bem evidenciado nas suas práticas e nos seus resultados. Isso é resultado natural da evolução do nível de consciência da humanidade. Novos negócios surgem diariamente com crescimentos acelerados para trazer soluções mais eficazes aos nossos problemas. As novas organizações atraem melhores talentos pois estão mais alinhadas com essa ideia de capitalismo consciente ou mais humanizado.

As organizações que não iniciarem esse movimento de transição não têm grandes hipóteses para fazer parte do nosso futuro. A pergunta que fica para estes grupos: está mais fácil recrutar os melhores talentos? Está mais fácil vender para os seus consumidores? A resposta é não. Quanto mais tempo demorar o ajuste, mais sujeito ao MUVUCA uma organização estará!

Muitos são aqueles que vaticinam o “fim do capitalismo” tal como Marx o tinha previsto. De uma certa forma, é possível afirmar que o vosso movimento está a ir ao encontro do “fim do capitalismo tal como o conhecemos”?

Eu acredito que o capitalismo não está no fim, nem o socialismo. Essa ideia de esquerda OU de direita, é uma ideia do nível de consciência de há mais de 100 anos.

Olhando para a História de uma forma bastante simplista, percebemos que o capitalismo foi excelente na produção de riqueza, mas falhou na sua distribuição; já o socialismo foi um excelente sistema para distribuir a riqueza, até que esta acabou, pois este sistema falhou na produção de riquezas adicionais.

Estamos no meio de uma revolução invisível. O capitalismo e o socialismo são partes integrantes do novo sistema económico. Ainda não descobrimos como encaixar estas peças. Daqui a 20 anos, vamos olhar para a história que vivemos hoje e dizer “aquilo que aquelas pessoas discutiam era o nascimento do que hoje chamamos de XXXX”.Que nome teria um sistema que produz e distribui bem as riquezas e que existe para resolver problemas e não para criar mais?

[quote_center]Ensinamos a aplicação dos fundamentos do capitalismo consciente através de exercícios práticos e técnicas, para que possam ser replicadas pelos participantes em qualquer organização. O nosso objetivo é criar um exército de consultores pelo mundo inteiro que sirva para acelerar a transformação. Não dá mais para esperar[/quote_center]

Esta é a primeira edição europeia do programa “Conscious Business Journey” (e que terá lugar em Lisboa no final do mês]. Como é que se ensina uma empresa a navegar nestes princípios e, mais importante, a colocá-los em prática?

Esta é uma excelente pergunta. Muito desta jornada passa por despertar o lado humano de todos os stakeholders através de uma causa (ou propósito) que alinhe o interesse de todos. Esta é a vigésima segunda edição deste programa e são já mais de 630 profissionais que passaram por ele. A cada interacção existe uma evolução do programa. O objetivo é capacitar os participantes nas técnicas e ferramentas para despertar o lado humano de uma organização, redireccioná-la para a sua causa, ajustada à realidade atual, e criar uma cultura responsável que vive em prol de um propósito maior.

A intenção é que este grupo de profissionais tenha a capacidade para ajudar as organizações nesta jornada de despertar os capitalistas conscientes que existem no interior de cada organização, sendo que esta mesma jornada está muito próxima do movimento B-Corp  (Sistema B no Brasil e America Latina) cada vez mais disseminado pelo mundo.

Ensinamos a aplicação dos fundamentos do capitalismo consciente através de exercícios práticos e técnicas, para que possam ser replicadas pelos participantes em qualquer organização. O nosso objetivo é criar um exército de consultores pelo mundo inteiro que sirva para acelerar a transformação. Não dá mais para esperar.

E que diferenças encontra – pois decerto existem – como mentor e formador deste programa, nos diferentes países em que o programa está a ser implementado?

Cada país, cada cultura, tem as suas particularidades, por mais universais que sejam esses conceitos. A história das pessoas, da sua cultura local e de suas jornadas pessoais variam e isso tem impacto na forma de conduzir o programa e na forma de o aplicar nas organizações locais. Já estivemos em Israel, Colômbia, Brasil, Estados Unidos, e até em Cuba (apesar de não lhe chamarmos “capitalismo consciente”, mas sim “negócios conscientes”).

Podemos ver que são culturas completamente diferentes e por isso o programa é tão dinâmico. A cada sessão aprendemos mais, e a cada sessão somos também mais eficientes com as técnicas de aprendizagem.

Além do programa, oferecemos mentoria para aqueles que colocam a aprendizagem em prática, para ajudar a transformar as organizações e as suas comunidades.

Tendo em conta o mundo dos negócios da actualidade, no qual a esmagadora maioria das empresas, apesar de se dizerem “conscientes da necessidade de mudança”, continuam a fazer o seu “business as usual”, qual o seu nível de optimismo face ao incutir de “consciência” no mesmo?

As evidências da necessidade de mudança crescem a cada dia. No final de 2017, Larry Fink, CEO da Black Rock (maior investidor institucional do mundo com US$ 7 biliões de activos) lançou uma carta aos presidentes de empresas de capital aberto com uma mensagem clara: “estamos à procura de líderes e empresas com enfoque no longo prazo” (também destacado no meu livro). Recentemente foi anunciado em Silicon Valley a criação da Long Term Stock Exchange, com novas regras de longo prazo. Os negócios que resolvem problemas tem um melhor acesso a capital do que os tradicionais. Essa mudança será exponencial. No momento estamos com desempenhos piores do que o próprio crescimento linear do “business as usual”, mas o ponto de inflexão não está distante.

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