Intervenção de D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra, no jantar-debate promovido pelo núcleo de Coimbra da ACEGE, no Seminário Maior de Coimbra, dedicado ao tema “A economia do dom”
SAUDAÇÃO
Saúdo todos os presentes, que aceitaram o convite para participar neste jantar promovido pelo Núcleo de Coimbra da ACEGE, a Associação Cristã de Gestores e Empresários. É uma honra estar convosco e podermos partilhar alguns dos nossos sucessos, mas também as nossas apreensões e dificuldades, numa visão aberta, que possibilite o diálogo e provavelmente o confronte de ideias.
Dirijo uma palavra de gratidão à Direcção da ACEGE pelo trabalho que tem desenvolvido entre nós e, de modo especial, pela organização deste jantar, que nos dá a possibilidade de estarmos juntos e motivados pelo desejo de contribuir eficazmente, cada um a seu modo, para o progresso da comunidade humana da nossa região e do país.
Felicito a ACEGE por ter escolhido este lugar, o Seminário de Coimbra, para a realização deste encontro, pois ele tem um simbolismo muito forte: significa o conhecimento, a investigação e a cultura de matriz judeo-cristã, disponível para ajudar a comunidade a encontrar os melhores caminhos de realização no presente e no futuro, numa atenção permanente à humanidade e numa abertura irrenunciável ao transcendente.
ALGUNS PRESSUPOSTOS
Primeiro. Economia do dom.
Foi o tema proposto para a nossa reflexão desta noite. Como é evidente, vou centrar-me mais no dom do que na economia, pois seria abusivo da minha parte meter-me por trilhos que não domino e para os quais a instituição que sirvo não tem uma palavra objectiva e clara. A realização concreta da economia é um campo especializado de regras, que exigem um conhecimento aprofundado, sobre as quais não há um consenso alargado e que, inclusivamente, não raro divide as pessoas, tendo em conta as ideologias que lhes estão subjacentes.
Há, no entanto, alguns princípios fundamentais sobre os quais se pode discutir, mas em que geralmente é possível chegar a pontos de vista comuns ou, pelo menos, aproximados. Nesse sentido a palavra e o conceito de “dom”, que faz parte do título desta conversa, podem congregar os mais variados espíritos, quer estejam bem adentrados na fé cristã, quer estejam animados pelo denominador comum, que se reflecte na célebre expressão “homens de boa vontade”, uma forma de referir aquilo que é inalienável na identidade humana, independentemente das tradições religiosas de cada um ou de cada povo – trata-se daquilo a que se tem chamado o humanismo, que não se fecha no imanentismo, mas está aberto à transcendência.
Segundo. A Doutrina Social da Igreja.
Com base na Escritura e na Tradição – e, portanto, em princípios que não mudam, como são a dignidade da pessoa humana, os seus direitos e deveres, o bem comum, a participação -, a Igreja foi formulando ao longo dos tempos um rico património, que procura oferecer ao mundo o seu pensamento em matéria social, a que se chamou Doutrina Social da Igreja.
Esta doutrina parte de um olhar sério para a realidade e desenvolveu-se sobretudo a partir de Leão XIII. A revolução industrial deu um forte impulso, quando trouxe à luz do dia as novas realidades marcadas pelo progresso económico mas também pelas crescentes e escandalosas assimetrias, geradoras de muita pobreza e injustiça, que claramente punham em causa a paz social.
Com a diversificação de questões que se foram levantando, tanto ligadas ao mundo das tecnologias, do trabalho, das transacções económicas, do lugar do capital e das finanças, essa reflexão foi ganhando novos contornos e adquirindo novos fundamentos, sintetizados nos muitos documentos publicados pelos Pontífices ao longo dos séc. XIX, XX e XXI. Podemos dizer que, hoje, possuímos um património de doutrina social sistematizado e coerente que muito pode contribuir para o debate acerca das questões do desenvolvimento económico, político, social e humano.
Terceiro. O desenvolvimento económico no contexto do desenvolvimento integral.
A encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI, publicada em 1967, sobre o progresso dos povos, marca um momento decisivo na história do pensamento da Igreja, quando situa a questão da economia no contexto mais vasto do desenvolvimento humano integral e não como uma realidade em si mesma.
No nº 14, diz: “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo… não aceitamos que o económico se separe do humano; nem o desenvolvimento das civilizações em que ele se inclui. O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira”.
Este era e continuará a ser o pressuposto fundamental para qualquer reflexão e debate sobre desenvolvimento e economia. Um olhar realista ou, porventura, pessimista sobre o que se passa na actualidade e sobre os efeitos nocivos para a sociedade quando o desenvolvimento é visto de forma fragmentaria ou a economia como um mundo fechado, com princípios e regras próprios, mas deixando na sombra o bem integral das pessoas e dos povos, faz-nos reafirmar de novo que a economia nunca pode desligar-se do contexto do desenvolvimento humano integral.
Quarto. O diagnóstico exige mudanças a todos os níveis.
A economia é a lei do governo da casa comum. Os mais variados tipos de diagnóstico da realidade económica, tanto à escala local como à escala universal ou global, mostram uma situação deplorável no que respeita à equitativa distribuição das riquezas, ao acesso aos bens a que se tem direito, à responsabilidade de pessoas e instituições, à relação com o trabalho, a cultura, à inclusão e exclusão social.
Segundo uma visão pessimista, não há muito a fazer, pois a realidade impõe-se diante de qualquer possibilidade ou tentativa de mudança. Retirando a frase do seu contexto, há até quem use a expressão bíblica atribuída a Jesus pelo Evangelho, “pobres sempre os tereis convosco” (Jo 12, 28), para justificar a inoperância e a recusa de mudar de mentalidade e acção.
Segundo uma visão optimista, bastaria criar riqueza, esperando que as leis da produção, da oferta e da procura, da regulação do mercado, acrescidas de alguma preocupação social e encimadas pela caridade, fossem suficientes para um governo equilibrado da casa comum, na qual todos são cidadãos e membros da família humana universal.
De facto, a situação que vivemos, caracterizada pela crescente globalização económica e financeira, exige uma mudança de mentalidade e atitude por parte de todos, tanto indivíduos como instituições, uma vez que aquilo que a todos diz respeito deve ser objecto da responsabilização de todos.
UMA QUESTÃO ANTROPOLÓGICA
Qualquer mudança de comportamentos nasce de uma visão antropológica, ou seja, do modo como entendemos a pessoa humana, a nossa e a dos outros. Esse é o dado fundamental que nos permite caminhar em determinada direcção, que nos possibilita pôr o homem no centro de tudo ou, porventura, outras realidades, sejam elas quais forem, nomeadamente os bens materiais, o enriquecimento ou o aumento do poder.
A antropologia de matriz judeo-cristã chegou aos cumes mais elevados da afirmação da dignidade da pessoa humana, quando proclamou que a pessoa vale por si mesma, sem quaisquer outros atributos senão o facto de ser pessoa, criada por Deus e aberta à relação com o mesmo Deus, com o universo também criado e com os outros. Nesse sentido a Gaudium et Spes 12, sintetiza: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como centro e seu termo”.
Partindo dessa consciência de que cada pessoa é única e irrepetível, é sujeito e não objecto, foi dotada por Deus de inteligência e liberdade, se afirma a igual dignidade de todos os homens, independentemente de qualquer outro factor que os possa distinguir uns dos outros. As diferenças culturais, biológicas, sociais, religiosas ou quaisquer outras nunca podem pôr em causa a igualdade moral da pessoa humana, nem pôr entrave aos direitos e deveres comuns a todos e a cada um.
Na abordagem da questão da igual dignidade da pessoa humana é radicalmente diferente entender, como acontece com a visão cristã, que há elementos fundamentais que definem uma verdadeira natureza humana, ou então defender uma concepção relativista da pessoa humana, como é próprio do chamado pensamento débil, com tantos paladinos na actualidade. Num caso, entende-se como inalienável o respeito pela dignidade de cada pessoa em cuja natureza se reflecte a imagem do Criador, sem que se possa dispor dela arbitrariamente (cf. Bento XVI, Mensagem do Dia Mundial da Paz 2007); no outro caso, facilmente se discutem ou põem em causa os direitos humanos de cada pessoa, tendo em conta as circunstâncias e os interesses da mais variada ordem.
Afirmar a dignidade da pessoa humana significa reconhecer que “o bem da pessoa humana tem precedência sobre tudo o resto e transcende qualquer instituição humana” (João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2000), significa reconhecer que os “direitos são inerentes à pessoa humana e à sua dignidade; não são conferidos por qualquer instituição (o Estado ou outra), que somente pode e deve reconhecê-los” (João Moura, Doutrina Social da Igreja, vista e vivida por um leigo, Gráfica de Coimbra, 2009, p. 49)
SOMOS DOM
“O homem não se pode realizar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo” (Gaudium et Spes 24). O Concílio Vaticano II sintetiza assim este dinamismo essencial da nossa condição. Tudo o que somos, recebemo-lo de Outro e tudo o que somos é dom para os outros. De outra forma seríamos seres fechados sobre nós mesmos e estaríamos condenados a estar sós e a viver infelizes, o que contrariava radicalmente o nosso desejo mais profundo e a nossa vocação primeira.
De outra forma, podemos dizer que a pessoa humana é por natureza ser social e não pode viver nem desenvolver-se sem entrar em relação com os outros e numa relação que seja dom para os outros (cf GS 24).
Antes daquilo que fazemos está aquilo que somos; antes da economia está a pessoa; para além das nossas capacidades de realizar o progresso estão os espíritos inteligentes, conscientes e livres. Numa linguagem de algum modo neutra, estamos a falar de amizade; numa linguagem com sabor bíblico, trata-se do amor a Deus e do amor ao próximo, elevado à categoria de mandamento novo que outra coisa não é senão a codificação da nossa condição de dom de Deus e dom para os outros.
Quando a teologia e o Magistério da Igreja nos falam da opção preferencial pelos pobres estão a conduzir-nos para o significado mais sério da expressão “somos dom”. “Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus” (G. Gutiérrez e G. L. Mueller, Ao Lado dos Pobres, Paulinas, 2014, p. 145). Trata-se de uma preferência e não de uma exclusividade, mas uma preferência importante, pois manifesta o amor gratuito de Deus, por um lado, e que o outro precede sempre o eu, precisamente por ser o outro e independentemente do modo como me olha, me acolhe ou me ignora. Trata-se de amar como Deus nos ama, dom gratuito. Nem sequer se trata de fazer dos outros o lugar da retribuição do dom que Deus me faz, nem de dar porque se recebeu, mas simplesmente porque Deus é Deus, Ele amou primeiro e ser critão é responder a essa iniciativa (cf. G. Gutiérrez e G. L. Mueller, Ao Lado dos Pobres, Paulinas, 2014, p. 145-146).
Em última instância este é o substrato das chamadas Bem-aventuranças proclamadas por Jesus e que encontramos no Evangelho segundo S. Mateus e S. Lucas. Trata-se do dom, que por si mesmo é gratuito e só pode fundar-se no sentido do outro e no sentido de Deus. Elas superam inclusivamente a norma ou a lei dos mandamentos do Decálogo, apesar de não a anularem. No mesmo sentido vão as palavras de Jesus, qual comentário às bem-aventuranças e à condição gratuita do amor como dom, quando diz: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores” (Mt 5, 44-45).
Quando António Pinto Leite nos ofereceu a sua reflexão sobre “o amor como critério de gestão” estava a dar-nos algumas pistas para que pudéssemos fazer caminho e tirar as consequências lógicas acerca do lugar do amor como dom recebido e oferecido nas diversas formas de relação: humana, social, política, económica; estava a dizer-nos que, para respeitarmos a nossa condição humana, nada pode ficar de fora desta realidade que nós somos por natureza e que nos deve orientar como critério em tudo o que fazemos. Ao ler o seu texto fica-se com a sensação de estar diante do mais radical comentário ao Evangelho, pois procura aplicar a lei fundamental do amor recebido e oferecido a todas as áreas da vida em sociedade; parece estarmos diante de uma extensão do magistério da Igreja, quando diz por meio da pena de Bento XVI: “O programa do cristão – o programa do Bom Samaritano, o programa de Jesus – é um coração que vê. Este coração vê onde há necessidade de amor, e age de acordo com isso” (Bento XVI, Deus caritas est, 32).
No fundo, os grandes princípios da Doutrina Social da Igreja nascem desta realidade de sermos dom recebido e dom para ser oferecido: dignidade da pessoa humana, bem comum, destino universal dos bens, direitos e deveres, solidariedade, subsidiariedade, participação. Do mesmo modo, daqui nasce o modo cristão de ver valores como a vida, a paz, a verdade, a liberdade, a justiça, a solidariedade ou a caridade.
Ser dom é igualmente critério para aferir a orientação de uma vida e do modo de se posicionar nela: vida aberta aos outros e disponibilidade para uma relação de dádiva e serviço ou vida fechada no egoísmo de quem procura o bem próprio e acaba na mais crua solidão, que consiste em ter porventura muito sem ter ninguém ou ter muitos à volta não pelo que se é, mas pelo que se tem.
ECONOMIA DO DOM
De entre as muitas consequências que se podem tirar destes pressupostos enunciados, procurarei enunciar apenas algumas, seguindo os ensinamentos do Papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, onde se refere a vários temas sobejamente desenvolvidos noutros textos do Magistério, procurando actualizá-los de acordo com as situações que se vivem no nosso tempo.
Uma economia de inclusão em vez da economia da exclusão.
“Hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social” (EG 53), pois esta economia mata. A questão da desigualdade social é crucial no nosso tempo, fruto do jogo da competitividade descontrolada assente na lei do mais forte e do poderoso que engole o mais fraco.
Está em causa o facto de haver trabalho para alguns e não haver para outros, que ficam excluídos e marginalizados, sem perspectivas de futuro. Promove-se a cultura do descartável e a globalização da indiferença, que faz dos excluídos subprodutos da humanidade, como se não tivessem direito à sua parte da riqueza existente e a uma vida digna.
A afirmação da primazia do ser humano em vez da idolatria do dinheiro (cf. EG 55).
“A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano”. As ideologias que sobrevalorizam as finanças, a especulação financeira, a economia sem orientação antropológica e a autonomia absoluta dos mercados reduzem o ser humano a uma das suas necessidades: o consumo.
Por detrás esconde-se a rejeição da ética que parece contraproducente face à ambição do lucro e da sede de poder. Não pode haver economia e finanças sem uma ética que ponha no centro o ser humano (cf. Eg 57-58).
Neste capítulo podemos referir a importância do justo pagamento dos impostos, mas também a distribuição dos lucros, a justiça nas relações de trabalho, a equidade e a solidariedade.
A promoção da cultura da não violência e da paz por meio da justiça social.
“A desigualdade social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, (mas) porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a estender a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça” (EG 59).
Mesmo que o fenómeno da violência possa ter outros fundamentos, é um facto que as desigualdades e as injustiças sociais provocam também uma revolta nas famílias e nos povos. Sucede na Europa e nos países economicamente ricos e desenvolvidos, mas sucede muito mais nos continentes subdesenvolvidos ou em vias e desenvolvimento, na África, na Ásia ou na América do Sul.
O fenómeno das migrações, que tanta preocupação tem causado aos países ricos tem aí grande parte da sua explicação. Deparamo-nos com ele às nossas portas e procuramos resolvê-lo agindo sobre as consequências, quando ele só pode ter uma solução mais cabal se formos às causas que o originam.
Os programas de desenvolvimento económico, de crescimento cultural, de reformas políticas, de repartição da riqueza, estão entre as mais importantes ações a implementar pela comunidade internacional e vão muito mais longe do que acolher ou rejeitar aqueles que chegam a fugir da guerra, da pobreza , da perseguição política ou religiosa.
Como caminho a seguir nesta área, o Papa Francisco, no seu discurso ao Parlamento Europeu, a 25 de Novembro de 2014, propõe a via de uma solução colectiva de toda a Europa, contrariando assim as soluções particulares para o problema. Por outro lado, considera que a Europa estará em condições para enfrentar esta questão se “souber propor com clareza a própria identidade cultural e criar legislações adequadas que saibam ao mesmo tempo tutelar os direitos dos cidadãos europeus e garantir o acolhimento dos migrantes; saberá adoptar políticas correctas, corajosas e concretas que ajudem os seus países de origem no desenvolvimento sociopolítico e na superação dos conflitos internos” (Papa Francesco Parla all’Europa, Ed. Consiglio dele Conferenze Episcopali d’Europa, p. 31)
Globalização e ecologia, dois lugares de luta pelo bem comum.
O mundo tornou-se pequeno, tornou-se verdadeiramente um globo, graças às tecnologias desenvolvidas que permitem viajar num curto espaço de tempo de um ao outro lado, graças às possibilidades de circulação da informação e às tecnologias da comunicação, verdadeiras revoluções dos tempos modernos.
Não se aboliram nem vão abolir as fronteiras entre países e povos – em alguns casos fortaleceram-se até os nacionalismos – mas elas têm um significado diferente e são, em parte, superadas pelas condicionantes que estão acima delas.
Diante da realidade da globalização económica, financeira, dos mercados, cultural, temos duas possibilidades: lutar contra ela, fechando países e povos, o que é impossível e pode ser desumano, ou, como sugere o Papa Francisco, seguir a via da integração.
Partindo do princípio básico de que o planeta terra não é propriedade de alguns, mas de todos e do apelo moral à distribuição equitativa dos frutos da terra e do trabalho humano, a globalização pode e deve estar ao serviço da construção do bem comum universal.
Na era da globalização, temos mais direito a sonhar com a superação das dicotomias económicas, sociais e culturais que têm dividido as regiões do planeta ou os pequenos mundos dentro de cada continente ou de cada país. As vias abertas da inclusão, da integração, do diálogo, do trabalho em favor da solidariedade e do bem comum, o sentido da justiça como um imperativo ético, têm de fazer parte integrante do processo de globalização. Se assim não for, a globalização torna-se uma estrada aberta às novas formas de colonização e um instrumento de poder ao serviço de novas assimetrias, de novas escravaturas e de crescentes injustiças.
Neste contexto, tem particular pertinência o tema da ecologia, tão presente nos fóruns universais e que tanto divide e contamina o bom entendimento entre pessoas e povos.
Na sua Encíclica “Laudato Sii”, Sobre o Cuidado da Casa Comum,o Papa Francisco trata da ecologia como uma realidade que tem a ver, acima de tudo com a humanidade inteira. Não trata da preservação da natureza como algo desligado da centralidade da pessoa humana, mas diz: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral” (LS 13).
Temas como a poluição e as mudanças climáticas, a água, a biodiversidade, a qualidade de vida humana e a degradação social, a desigualdade planetária, são incluídos naquilo a que chamou uma ecologia integral, que se caracteriza por incluir não só a questão ambiental, mas também a dimensão económica e social.
Também na questão ecológica o princípio do bem comum é essencial, pois quando se perde essa noção nas macro ou nas micro opções pessoais, políticas, económicas, sociais, culturais ou ambientais, fica-se entregue à tirania do mais forte e dos interesses particulares e imediatos.
O forte apelo a uma conversão ecológica, que inclui o crescimento na espiritualidade (LS 216), vem ao encontro de uma mudança cultural sem a qual não se fará caminho. Podíamos falar de uma conversão no sentido atrás referido da economia do dom, pois a ecologia fica cara, exige recursos, dá trabalho, e se não as motivações para fazer este caminho não crescem de forma harmónica e adequada, pode tornar-se apenas um slogan ou um bem-intencionado desejo de alguns voluntaristas do nosso tempo.
CONCLUSÃO
Poderia ter abordado esta mesma temática de muitas outras formas. Nunca poderia sair do enquadramento teológico, espiritual e humanista que brota da tradição judeo-cristã desenvolvida, actualizada e sistematizada pela Doutrina Social da Igreja, o horizonte em que me situo, persuadido da convicção de que aborda a questão de forma integral e no respeito por aquilo que somos enquanto pessoas em sociedade.
Sempre foram necessários os princípios a nortear a ação humana aos mais diversos níveis. Em questões como estas, a racionalidade conjugada harmoniosamente com a fé, sem se confundirem, mas como cooperantes na busca do maior bem das pessoas e povos, levarão a discernir os melhores caminhos, a tomar as decisões certas e a agir corajosamente.
Há uma responsabilidade que recai sobre todos e cada um: indivíduos, famílias, escolas, governantes, autarcas, gestores, empresários, trabalhadores, instituições religiosas, organismos internacionais.
Se tenho o direito de propor algo no final desta partilha, sugiro que estes temas aqui apenas elencados e muitos outros a que nem sequer se acenou, entrem na reflexão e no debate, façam parte das motivações que levam a agir em tudo o que diz respeito ao desenvolvimento, ao progresso e à construção da humanidade.
Agradeço à ACEGE por, à sua maneira e dentro das suas possibilidades trazer esta reflexão para a mesa, em que tive a alegria de participar juntamente com todos os que aceitaram este convite e decidiram tirar um pouco do seu tempo de trabalho ou de descanso para o encontro, a reflexão e a partilha.
Obrigado a todos pela vossa participação e pela atenção dispensada.
Coimbra, 27 de Setembro de 2018
Virgílio do Nascimento Antunes