Pouco mais de um mês passado depois do início da crise de saúde pública provocada pelo novo coronavírus, e ainda sem um fim certo à vista, já se começa a pensar no futuro. O Igreja Viva entrevistou Fátima Amorim, responsável do núcleo de Braga da associação cristã de empresários e gestores (ACEGE), para perceber como é que as empresas poderão chegar ao outro lado desta crise
POR JOÃO PEDRO QUESADO
Pouco mais de um mês após o início desta crise de saúde pública provocada pelo novo coronavírus, qual é o panorama nas empresas?
Passado que está um mês sobre a crise pandémica, o panorama nas empresas é de muita apreensão, consternação e preocupação com o futuro e com os efeitos ainda incomensuráveis dos danos directos, indirectos e colaterais na economia e na sociedade. Todos os dias são conhecidas novas medidas de apoio, nova legislação e, sobretudo, maior é a consciencialização do problema, dos impactos negativos para as empresas – das micro entidades às grandes empresas – na continuidade das suas operações, na dificuldade da manutenção dos postos de trabalho, no cumprimento das suas obrigações.
Mas muito especialmente a preocupação com as famílias, o último reduto onde todos os efeitos se farão sentir, ao nível material e da sua subsistência mas, muito especialmente, ao nível emocional. Os empresários estão de forma generalizada preocupados e até desorientados. Nunca antes foi vivida uma situação com tamanha inesperabilidade e gravidade, com efeitos tão imediatos e brutais. Nenhum manual de economia ou teoria económica previu esta situação, nem o modelo a utilizar na mitigação ou salvaguarda de tão graves consequências.
Como é que os empresários e gestores estão a lidar com este desafio?
Empresários e gestores, são acima de tudo seres humanos, lidando com a situação de variadas formas. Existem os que estão a tentar inteirar-se da complexidade das situações, ser racionais do ponto de vista económico e pessoal, tentando não tomar decisões precipitadas, por instinto ou por medo. Reunindo o máximo de informação, ponderando todas as variáveis em causa – as que poderão controlar e as exógenas – procurando o apoio de parceiros especializados na matéria ou em matérias semelhantes, fazendo orçamentos económicos e de tesouraria a curto e a médio prazo. Já não pensam só em 2020, já procuram prever o 2021.
Outros há que, não possuindo as condições económicas, logísticas e até pessoais para essa ponderação, se encontram mais vulneráveis, sós e desorientados. É especialmente nesta franja que entidades públicas, de responsabilidade social ou associações como a ACEGE devem intervir mais assertivamente e com maior proximidade, não esquecendo que o tecido empresarial português é maioritariamente constituído por PMEs [Pequenas e Médias Empresas]. E é nesta matéria que existem já bons exemplos. Na ACEGE tomamos várias iniciativas: um conjunto de sessões online, com apresentação de boas práticas empresariais, testemunhos pessoais e reposição das melhores conferências realizadas na associação, que pretende ser um espaço de partilha e desafio ao longo deste período de crise.
Existe também a plataforma online lançada pelo Município de Braga, InvestBraga e parceiros especializados, o PACOTE – Programa de Apoio e Outro Tipo de Empresas –, de apoio e esclarecimento de dúvidas a todas as empresas do distrito. Mas este é um desafio que só poderá ser ultrapassado positivamente se conseguirmos unir esforços e desenvolvermos um verdadeiro espírito duradouro de solidariedade e partilha: partilha de informação credível e real, partilha dos apoios e medidas, partilha dos danos e das consequências.
É necessário que empresários e as famílias, os colaboradores e os gestores, o Estado e sociedade tenham um foco claro e objectivo: o bem comum. A consciência de que o todo vale mais do que a soma das partes, colocar o bem comum acima dos interesses individuais, redutores e de muito curto prazo – enquanto pessoas e enquanto empresas. As empresas só sobrevivem em contextos necessariamente alargados de parceiros e concorrentes, em rede com os seus stakeholders – clientes, fornecedores, Estado, colaboradores, bancos, entre outros – e shareholders – sócios, accionistas, detentores do capital – e só todos alinhados em torno de objectivos comuns de preservação da sua continuidade e operacionalidade, manutenção dos postos de trabalho, redistribuição equitativa das medidas de apoio e das responsabilidades económicas e sociais, conseguiremos aguentar os próximos tempos, que serão difíceis e longos, e preparar a retoma da economia, da saúde, das famílias e da sociedade em geral.
O que deve orientar as decisões das empresas para ser possível “construir esperança na crise”, como disse a direcção nacional da ACEGE ainda em Março?
Os princípios orientadores das decisões construtoras de esperança na crise, comungando dos valores e missão defendidos pela ACEGE, são os da Doutrina Social da Igreja: tendo sempre por base a dignidade da pessoa humana, todos temos igual dignidade, pois todos somos imagem e semelhança de Deus.
Temos o princípio do bem comum, que estabelece que deve haver na sociedade condições para que todas as pessoas se desenvolvam integralmente e de forma plena, por meio das suas habilidades e talentos. Temos também o princípio de subsidiariedade, que estabelece que uma instância superior só pode interferir na inferior quando esta não for capaz de resolver um problema por conta própria. Temos também o princípio do Destino Universal dos Bens, que determina que devemos proporcionar o melhor uso das coisas materiais segundo a intenção com a qual elas foram feitas.
Temos de administrar com justiça, solidariedade e discernimento todos os bens, principalmente os bens próprios, atendendo às necessidades das pessoas, que, para nós, cristãos, são filhas de Deus e nossas irmãs, o verdadeiro alicerce da sua dignidade, a respeitar sempre. “Deus destinou a terra para uso de todos os homens e povos, de tal modo que os bens criados devem chegar equitativamente a todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade”, afirma a constituição conciliar Gaudium et Spes. A pessoa humana não se realiza sem os bens materiais que respondem às suas necessidades primárias, condição básicas da sua existência, indispensáveis para se alimentar e crescer, comunicar, associar e atingir as metas a que é chamada. O Destino Universal dos Bens da Terra está na base do direito natural ao uso dos mesmos. É um princípio basilar de toda a ordem ético-social e de toda a doutrina social cristã.
No princípio da participação vemos reconhecida a autonomia do indivíduo para participar nas organizações de acções colectivas que a todos beneficiam. Estas acções colectivas possuem o intuito de resolver questões menores, deixando as maiores e mais urgentes para outros sectores competentes. Já o princípio da solidariedade mostra que existe uma responsabilidade social dos indivíduos uns para com os outros.
Também encontramos estes princípios orientadores na Economia de Francisco: a criação de um modelo económico “diferente, que permita às pessoas viver e não matar, incluir e não excluir, humanizar e não desumanizar, cuidar da criação e não depredar”, que gere um “pacto” para mudar o modelo da economia actual.
E depois temos o amor como critério de gestão. O amor é o mais poderoso critério racional de liderança de uma organização. Permite decidir sem grande esforço. O amor é sério e honesto, o amor é responsável diante dos riscos, o amor é sensível com os mais fracos. O amor procura a competência para poder servir. O amor tem os outros no centro das suas preocupações. O amor não é ganancioso, nem árido de valores, nem obsessivo com o lucro pessoal. O amor é ansioso por dar frutos e multiplicar. Por isso, a mensagem central da ACEGE é directa: adoptemos o princípio do amor ao próximo como critério de gestão empresarial. Parece absurdo, inaplicável, místico ou ridículo. Mas não é: significa tratar os outros como gostaríamos de ser tratados se estivéssemos no lugar deles. Nenhum critério pode ser mais pragmático ou operacional. Ao tomarmos decisões, coloquemo-nos sempre no lugar do nosso colaborador, do nosso fornecedor, do nosso cliente, do nosso accionista, da comunidade que nos envolve e sofre, dos que hão-de vir e esperam receber de nós um mundo vivível.
No lugar deles, que esperaria eu de mim? Nunca é demais relembrar que, para a comunidade de empresários e gestores que nos acompanham, a verdadeira e única missão da ACEGE é a de “inspirar líderes a mobilizar a comunidade para viver o amor e a verdade no mundo económico e empresarial”. O empresário, líder e gestor cristão é generoso e humilde, com espírito de serviço e inabalável na fé, na esperança e no amor. Não são utopias, são vantagens competitivas que nos tornam mais fortes, que nos tornam em líderes francos, transparentes, determinados, resilientes e assertivos. Normalmente possuidores de uma comunicação directa e honesta, respeitadores de e por cada uma das funções desempenhadas pelos seus colaboradores, mas muito especialmente por cada um dos seres humanos que compõem a sua família empresarial e pessoal.
“Construir a esperança na crise” é aceitarmos e desempenharmos esta nobre e divina vocação de líder empresarial, acreditar incondicionalmente que é Deus Pai, seu Filho Jesus Cristo e o Espírito Santo que nos iluminam e nos guiam. Nós só temos que estar alerta, disponíveis e submissos, colocando os nossos talentos e dons a render, sem preguiças, egoísmos e orgulhos, ao serviço do próximo. Somos chamados a sermos um instrumento ao Seu serviço. Acreditarmos que os dons do Espírito Santo se materializarão em nós na medida em que a eles nos abrirmos. E, então, seremos capazes de nos reerguer, reinventar e viver um futuro com um paradigma diferente, mais liberto da tirania dos bens materiais, do consumo desenfreado, da utilização irracional e cruel da natureza. Enfim, com mais e maior amor ao próximo.
Os apoios públicos anunciados até agora são suficientes para ajudar as empresas?
Na minha opinião, os apoios anunciados até agora vão revelar-se, a muito curto prazo, insuficientes, até porque se baseiam em diferimentos, atrasos ou prorrogações de prazos no pagamento e cumprimento de créditos e responsabilidades perante o Estado, perante a banca, senhorios, etc. É o “empurrar com a barriga” e com efeitos que poderão ser perniciosos para a tesouraria das empresas.
Penso que estas medidas poderiam ser repensadas para a possibilidade de conversão dos apoios em “ajudas a fundo perdido”, no todo ou em partes substanciais e mediante o cumprimento de algumas condições económicas e sociais, desde o cumprimento de rácios económicos e financeiros à manutenção dos postos de trabalho, o fomento de medidas de equilíbrio entre trabalho e família, pagamentos pontuais e atempados a fornecedores, medidas de protecção do ambiente, entre outras.
Os governos nacionais e dos parceiros europeus deveriam considerar a hipótese de, ao invés de “financiar a fundo perdido” os desempregados, através de subsídios de desemprego, “transferir” esse apoio para as empresas e, assim, aumentar a própria arrecadação de receitas fiscais, quer em sede de impostos directos e indirectos, quer em sede de contribuições e quotizações para a Segurança Social. Estas medidas, no entanto, deverão ser fiscalizadas de forma muito assertiva e tempestiva, evitando assim abusos ou a propensão para eventuais fraudes na sua utilização ou até apropriação indevida. Fiscalizações por entidades independentes e permanentes, quer do próprio Relato Financeiro e Contabilístico, quer da manutenção dos postos de trabalho, da correcta aplicação e utilização dos apoios, no cumprimento de todas as condições que poderiam tornar em não-reembolsável (como prémio de realização), no todo ou em parte, os montantes auferidos a título excepcional.
O regresso à normalidade ainda não tem data e será, tudo o indica, bastante gradual. Vai ser possível continuar a “construir esperança na crise” por um período de tempo tão indefinido?
O regresso à normalidade será provavelmente mais lento e doloroso do que todos desejaríamos, de forma muito gradual, por etapas, sectores de actividade e tipos de população. Devemos também estar preparados para novas vagas de pandemia.
Mas os empresários sabem, melhor do que ninguém, que os investimentos empresariais não são de retorno imediato ou instantâneo e temos que ver esta pausa como um investimento estrutural, de formação, capacitação e alteração dos modelos produtivos. Teremos, assim, que ser resilientes e reaprender a viver de forma mais serena e tranquila, menos sôfrega.
Com este confinamento, todos apreenderemos que é possível e aconselhável viver de maneira mais frugal, menos acelerada, e voltar a pensar e a reflectir verdadeiramente nas grandes questões humanas, sociais, económicas e políticas. Temos de olhar para e respeitar a natureza, responsabilizarmo-nos pelos nossos filhos e netos, assim como pelo mundo que lhes vamos deixar. Temos que repensar o conceito de família, a pedra basilar de toda a sociedade. Temos que dar valor às coisas simples, ao que não tem valor pecuniário mensurável, à proximidade, aos afectos verdadeiros, ao espírito de comunidade e ao bem comum! É necessário acabar com a cultura de gestão do ego individual, relembrarmos a consciência da finitude e da igualdade do ser humano, independentemente da raça, género, condição social ou económica, porque, aos olhos de Deus, somos todos iguais. Somos todos Seus filhos. Somos irmãos e não adversários. E muito menos podemos ser inimigos.
E aqui lanço um apelo ao poder público, às instituições, às famílias, à sociedade em geral, um apelo sentido e em forma de homenagem: Cuidemos dos mais velhos, dos que já deram tudo por nós, dos nossos idosos, nossos pais e nossos avós, e a quem será muito mais difícil ter esperança num futuro, que se calhar já sentem não ter. Os nossos mais velhos são a nossa história, a nossa cultura, a nossa família e aconchego. Não os deixemos sós, muitas vezes em corredores de morte e solidão e acima de tudo em total abnegação e submissão. É nossa obrigação vivenciar junto dos mais novos, deixar-lhes esse legado de exemplo de protecção, zelo e afecto para com todos, mas muito especialmente para com os mais frágeis e que tudo deram por nós!
O ressurgimento da economia terá que ser necessariamente num novo paradigma. Não vai ser fácil, mas não vamos começar dando ênfase ao negativo ou pensando que é impossível vencer. Poderemos, até, ter que começar do zero, mas vai valer a pena. Unidos e iguais, venceremos estas e outras adversidades, ficaremos mais fortes e mais preparados, iremos com toda a certeza assistir a grandes desenvolvimentos e inovações.
Artigo originalmente publicado na Igreja Viva, da Arquidiocese de Braga, a 16 de Abril de 2020. Republicado com permissão.