Simultaneamente preocupado e esperançado com o ano de 2011, António Pinto Leite acredita que os melhores líderes empresariais saberão retirar boas lições da crise e aplicá-las da melhor forma ao serviço da sociedade. E defende que pagar a horas “é o mínimo ético empresarial”
POR ANA SANTOS GOMES*
A ACEGE lançou, com o apoio de quatro bancos e do Grupo José de Mello, o Fundo Bem Comum, apoiando projectos empreendedores de desempregados com mais de 40 anos. Sentem-se a remar contra a maré quando apostam num público-alvo que tem estado desprotegido?
Estamos seguramente a fazer algo diferente. Esta foi uma ideia boa, que nasceu há três anos e corresponde à necessidade da ACEGE de ter, ela própria, um projecto social. Olhámos para o sofrimento da sociedade e escolhemos uma zona desse sofrimento para a nossa actuação. Neste caso escolhemos o desemprego e focámo-nos com mais precisão no desemprego sénior. O projecto Bem Comum responde com amor ao drama do desemprego, mas não de forma caritativa. Antes pelo contrário, a nossa resposta está no empreendedorismo e por isso financiamos projectos (com mérito) de desempregados com mais de 40 anos e que estejam dispostos a iniciar uma vida empresarial nesta idade. Este projecto visa ser auto-sustentável e multiplicador. Para isso ele próprio tem de gerar lucro, tem de ser gerido profissionalmente, para que estes parceiros e outros novos se empenhem nele e nele invistam mais.
O mundo empresarial tem sido ingrato para com este escalão etário?
A sociedade actual é ingrata para com quem está a envelhecer. E há aqui uma contradição imensa e uma insustentabilidade à vista: a vida biológica é cada vez mais longa e a vida profissional é cada vez mais curta. Isto é economicamente insustentável. É insustentável ter pessoas que a partir dos 40 anos, e durante mais 40 anos, vão ficar dependentes da sociedade. Não há recursos para suportar dignamente esta situação. Portanto, há que dar respostas proactivas e inovadoras, como é o Fundo Bem Comum.
Foi difícil sensibilizar potenciais parceiros para este projecto?
Não, todos aderiram de intuição e à primeira vista. O projecto está muito bem estruturado pela McKinsey e muito bem definido no plano profissional, e isso é algo a que os investidores sofisticados são muito sensíveis.
Como define hoje o papel da ACEGE?
Somos uma associação que não defende qualquer interesse de ordem material. Não temos qualquer ambição de protagonismo, apenas de testemunho. Temos uma responsabilidade importante porque somos acolhidos com muita facilidade em todos os meios. A nossa influência é dirigida à consciência e ao coração de cada líder empresarial, acreditando firmemente que cada um faz a diferença. E disso não podemos nunca desistir. Nessa perspectiva o nosso papel tem sido meritório, mas comparado com tudo aquilo que pensamos ainda poder fazer é muito pouco. Quando penso como empresário fico satisfeito com o que a ACEGE tem feito, quando me ajoelho fico perplexo com o que Deus nos pede.
Que motivações vos levaram a querer intervir nos prazos de pagamento praticados em Portugal instituindo o projecto de pagamento pontual a fornecedores?
Tudo o que procuramos fazer assenta sempre na intenção de pôr a economia ao serviço do Homem e da Sociedade. Olhando as realidades procuramos detectar as zonas de sofrimento e emendá-las. E esta é uma zona de sofrimento. Os estudos sobre sinistralidade empresarial e aumento do desemprego causados pelo não pagamento atempado dos compromissos entre empresas apontam para valores preocupantes. Por outro lado, para uma associação cujo objectivo maior é fazer passar valores e formar consciências, é fundamental que se definam mínimos éticos. Não vale a pena ter lindas mensagens de responsabilidade social, pintar paredes de IPSS e dar donativos se não fizermos o mínimo – e pagar a horas é o mínimo ético empresarial.
E encontraram outros entusiastas?
Sim. A ACEGE lançou esta iniciativa no ano passado e dezenas de empresas comprometeram-se imediatamente, através de carta assinada pelo respectivo presidente do Conselho de Administração. Mas depois o projecto não teve o desenvolvimento que esperávamos e por isso vamos agora projectá-lo juntamente com a CIP.
Os encontros com empresários têm reunido que tipo de motivações?
Cada ciclo anual tem a sua motivação, que une todas as conferências do ano e por todo o país. O tema deste ano é “Portugal tem Futuro – a Missão dos Líderes Empresariais Cristãos”. Portugal tem futuro é um grito de alma. Um líder cristão perceber a sua missão num mundo em sofrimento é um imperativo de responsabilidade e de amor ao próximo.
Que papel têm hoje os empresários na procura de soluções para a crise em que o país está mergulhado?
Têm um papel decisivo. Primeiro, sem o seu sentido de risco e o seu empreendedorismo não haverá crescimento económico e sem crescimento económico, Portugal passará anos mesmo muito difíceis. Depois, o sentido social com que actuem é decisivo para proteger as famílias, os trabalhadores e os próprios negócios. Finalmente, o seu testemunho ético e social exemplar é fundamental para despertar a confiança e a motivação dos destinatários das suas decisões. Tudo o que se possa fazer para construir uma classe de dirigentes empresariais respeitada é decisivo para a economia e para o bem comum. A crise também revela a dificuldade que há em estabelecer diálogos e compromissos em Portugal. Temos de encontrar pessoas credíveis capazes de o fazer consistentemente, ao nível da sociedade civil, para que Portugal não seja uma história de empobrecimento sistemático.
Em tempo de crise, a atenção dada ao capital humano corre o risco de se sobrepor à atenção dada aos números?
Em organizações de pessoas, como aquela em que estou, uma sociedade de advogados, onde os activos vão dormir a casa, os números dependem da motivação, do respeito e do enquadramento social e humano que se dá às pessoas. Admito que em áreas diferentes da economia os números possam prevalecer sobre as pessoas. Mas é um equívoco estratégico não dar prioridade ao capital humano.
Qual deve ser hoje a postura de um líder?
Antes de mais, o líder deve dar um testemunho de vida que inspire confiança e respeito, dentro e fora da empresa. Em segundo lugar, perante uma crise, um líder tem de ter uma coragem íntima e uma disponibilidade para o sacrifício acima do normal. É nos tempos de crise que se conhecem os verdadeiros líderes. Diria mesmo que a crise é a melhor escola de vida porque é a escola em que se têm de fazer opções de fundo, em que nos confrontamos com o medo humano e temos de ter a força interior para transmitir segurança e sentido de justiça. Só é verdadeiro líder aquele que se esqueceu de si próprio e a adversidade é o contexto certo para testar isso. Finalmente, o ano de 2011 deve ser um exercício de sentido social para todos os líderes empresariais, cristãos ou não. Em Portugal muitas empresas vão estar bem em 2011, e aquelas que puderem melhorar o seu salário mínimo e pagar salários mais próximos daquilo que é justo no plano da dignidade humana devem fazê-lo. Aquelas que puderem reservar algum prémio social para os seus colaboradores, sobretudo para aqueles que vão lidar com mais dificuldades, devem fazê-lo. Aquelas que puderem acudir discretamente a situações sociais e familiares difíceis dentro da sua empresa, devem fazê-lo. Esta crise é uma janela de oportunidade para a afirmação dos líderes empresariais junto do mundo do trabalho. E é uma janela de oportunidade para a afirmação dos líderes cristãos perante Deus.
Esta crise económica e financeira ficará para sempre ligada a uma crise de ética?
Se a ética for entendida no seu sentido cristão, sim. O centro da ética cristã é o amor. O Papa Bento XVI insiste muito num ponto que acho fundamental: não fiquem obcecados com o lucro. Pessoas houve que dirigiram negócios com impacto em milhões de seres humanos e, focados no seu interesse egoísta, apenas no seu lucro, correram riscos que tinham a obrigação de perceber que podiam causar dano a esses milhões de seres humanos. Evidentemente que aqui houve falta de amor ao próximo e de respeito pelos outros. Neste sentido, foi seguramente uma crise de ética. Apesar de tudo, não se deve pôr tudo no mesmo saco. Na crise de 2007/2008, por exemplo, o sistema financeiro português não comunga dos pecados de outros sistemas financeiros, como o americano ou o irlandês.
Esta crise pode servir de lição a esse nível?
Espero que sim. Isto escaldou-nos a todos. Mas a procissão da crise ainda vai no adro. Estamos a viver um período histórico. Mais um na minha vida. Vivi num país que era um império e onde me mentalizei para ir para a guerra. Seguiu-se o nascer da democracia, uma revolução, a tentação comunista e logo tivemos de salvar a democracia. Ficámos com um país mais ou menos desgovernado e apareceu o FMI duas vezes. Depois entrámos na Europa e demos um passo quase maior, que foi a entrada no Euro. Sentámo-nos à mesa com gente rica mas com as solas dos sapatos rotas. Somos o pelintra que se sentou à mesa com os ricos. E neste momento os ricos estão com pouca paciência para o pelintra. As nações ricas não têm paciência para um país que não se governa e que não é capaz de tomar decisões para poder estar no mundo dos ricos, que é onde Portugal quer estar e onde pode e deve estar.
Fazem falta mais movimentos da sociedade civil?
Fazem, sem dúvida alguma. Uma das mensagens que mais passo por todo o país, quando me reúno com os empresários cristãos, é: “Esqueçam o Estado, criem um corpus, uma força social que valha por si.” É a única maneira. Ou acreditamos nisto e agarramos o futuro de Portugal nas nossas mãos, ou caminhamos de neurose em neurose.
Que mérito reconhece ao Compromisso Portugal?
Foi um movimento muito apreciável, que lançou muitas ideias correctas para Portugal, que disse verdades inconvenientes e reuniu pessoas com muito valor. Como outros os movimentos da sociedade civil, esvaiu-se. E foi pena que se tenha esvaído.
Para um advogado é, de certa forma, penoso reconhecer que o mundo empresarial tem um certo descontentamento com a justiça?
Não há direito que com aquilo que os portugueses pagam de impostos e com a parte dos impostos que é destinada à justiça, esta trate as empresas com a ineficiência com que as trata. O problema da justiça é um problema de gestão — tenho escrito muito sobre isso. Os juízes são os meus colegas de faculdade. E os juízes até poderão imaginar que é impossível serem geridos de uma forma eficiente, mas olhem para a advocacia, onde havia total ineficiência e hoje em dia as sociedades de advogados constituem uma das áreas mais eficientes da economia.
O que é contribui para isso?
Desde logo a concorrência. É a primeira palavra-chave. Depois, o nível superior das pessoas sob gestão. São licenciados, com elevado discernimento, com níveis educacionais sofisticados. E ainda a noção clara que os advogados têm, quando se unem em organizações, de que é muito melhor ser assim do que não ser assim.
As alterações introduzidas na acção executiva estão a revelar-se suficientemente eficazes?
Não. Não estão. Manifestamente, é um dos maiores bloqueios da justiça portuguesa e ao qual há que dar resposta, mais uma vez numa perspectiva de gestão. Esta questão da gestão do Estado, da correcta afectação dos recursos públicos, é essencial em termos de justiça social: os cerca de 4,5 milhões de portugueses que trabalham no sector privado não podem abdicar de que o Estado seja gerido com a mesma eficiência com que são geridas as organizações da sociedade civil em que estão. A única maneira de reduzir custos no Estado sem se tocar nos salários dos funcionários públicos é reformar o Estado. É reformá-lo com criatividade. É fazer o que fazemos nas nossas empresas.
É uma questão de coragem?
Sim, é uma questão de coragem e de competência. A reforma do Estado coloca um desafio de gestão ao mais alto nível.
O que espera de 2011?
Vai ser um ano muito difícil e, por isso, um ano extraordinário. Vão aparecer grandes ideias, grandes energias e grandes soluções. Por um lado, tenho uma visão preocupada e, por outro lado, uma visão de esperança. Será provavelmente o maior desafio desde o 25 de Abril. Os espíritos empreendedores sentem adrenalina com o desafio que aí vem.
* Entrevista originalmente publicada na revista Tradição do Futuro, do Grupo José de Mello. |