Colocar os interesses da empresa – e de todos os seus stakeholders – à frente dos seus próprios interesses é a premissa – pelo menos em teoria – do líder “moderno”. Satisfazer as múltiplas exigências de accionistas, colaboradores, clientes, comunidade e sociedade pode ser uma tarefa hercúlea, ao mesmo tempo que o escrutínio é total, o público é digitalmente poderoso e se lidera na intersecção de dois mundos: um no interior da organização e outro no seu exterior. Afinal, neste enorme labirinto, o que se pretende dos líderes na actualidade?
POR HELENA OLIVEIRA
“Tempos houve em que os negócios eram impenetráveis. Era possível operar e, mesmo que o mundo à volta fosse um vórtex de actividade, nada impedia que se andasse para a frente. Agora, com a combinação de todos os factores em jogo, as empresas e o que está a acontecer ‘lá fora’ são, na verdade, um só”.
A citação acima faz parte do “The CEO Report”, publicado recentemente pela consultora Heidrick & Struggles, do qual fazem parte entrevistas aprofundadas a 150 CEOs, sobre o papel, em profunda mudança, dos líderes empresariais. Com mandatos cada mais reduzidos e níveis de confiança em declínio profundo, uma das grandes conclusões deste relatório – e de outros similares – é a de que a esmagadora maioria dos líderes – e não só empresariais – não tem vindo a acompanhar nem as significativas mudanças de que o mundo está a ser palco nem as crescentes expectativas que os múltiplos stakeholders têm deles próprios.
Na verdade, 75% dos CEOs entrevistados no relatório acima citado sentem que o seu “trabalho” se alterou profundamente ao longo da última década, à medida que novas influências provenientes do exterior da organização competem ferozmente com as responsabilidades tradicionais para com os conselhos de administração, accionistas, trabalhadores e clientes.
A verdade é que os CEOs inquiridos posicionam-se na intersecção de dois mundos crescentemente complexos e transparentes: um no exterior da organização e outro no seu interior. Com a proliferação de stakeholders, os CEOs têm de lidar em simultâneo com a instabilidade política e geopolítica, com os desastres naturais, com governos, reguladores concorrentes e com um público digitalmente poderoso, o qual, nas palavras de um dos CEOs entrevistados, “está continuamente a aparecer do nada”.
O grau de transparência enfrentado pelos CEOs, através do qual cada uma das suas decisões pode ser analisada a partir de múltiplos ângulos e em tempo real, exige todo um conjunto diferente de competências: não só necessitam de um conhecimento muito mais abrangente da realidade que os rodeia, como precisam também de perceber a melhor forma para interagir, influenciar e responder à mesma. Mas isso seria matéria para um outro artigo e, no que a este diz respeito, talvez seja mais útil começar pela crise de liderança que, há vários anos, tem vindo a ser tema de reflexão por parte de pensadores e académicos da gestão.
Líderes em crise e a passagem obrigatória do “eu” para o “nós”
“Depois de conduzir 14 estudos formais e mais de um milhar de entrevistas, de observar dúzias de executivos em acção e de compilar inúmeras sondagens, estou completamente convencido de que a maioria das organizações não tem a liderança de que necessita. E não estou a falar de um défice de 10%, mas de 200%, 400% ou mais, e não só no topo, mas ao longo de toda a linha hierárquica”. Quem o escreve é John P. Kotter, o reconhecido professor de Gestão na Harvard Business School , no seu livro “John P. Kotter on What Leaders Really Do”e, ao contrário do que se poderia pensar, a ideia não remonta propriamente a anos mais recentes, mas a 1999.
Uma visão similar teria, em 2007, o CEO da Medtronics, Bill George, ao escrever, no livro True North, o seguinte: “Existe um enorme vazio na liderança actual – nos negócios, na política, no governo, na educação, na religião e nas organizações sem fins lucrativos. Todavia, não existe escassez de pessoas com as capacidades certas para serem líderes. O problema é que temos uma noção errada relativamente ao que constitui um líder (…). Ao longo dos últimos 50 anos, os académicos da gestão conduziram milhares de estudos na tentativa de determinarem estilos de liderança definitivos, características ou traços de personalidade que poderiam caracterizar os grandes líderes. Mas nenhum destes estudos produziu um perfil claro do líder ideal, e ainda bem. (…). O que me preocupa realmente são os líderes poderosos que se curvam perante as pressões dos mercados em troca de ganhos pessoais, os que perdem de vista o seu ‘norte’ e colocam as suas empresas em risco ao se concentrarem nos adornos e mordomias da liderança em vez de prepararem as suas organizações para o longo prazo (…)”. Uma das ideias fortes defendidas no livro do antigo CEO da Medtronics, líder mundial em tecnologias médicas, a qual tem eco em muita literatura da gestão actual, reside no facto de os líderes terem de deixar de pensar, agir e comportar-se como “eu” e passar a fazê-lo enquanto “nós”.
Estes dois exemplos, com algum intervalo de tempo entre si – mas que continuam a fazer sentido nos dias que correm – podem ser seguidos por muitos outros similares, como é o caso do grande “épico” da literatura de gestão – o famoso livro From Good to Great, do não menos famoso Jim Collins que, em 2011, e a propósito da premissa “colocar o interesse da organização à frente dos seus próprios interesses” – a qual é agora obrigatória em qualquer que seja o texto de gestão politicamente correcto – denominava os líderes capazes de o fazer como pertencentes ao “nível 5”. Para Collins, o que distinguia estes líderes dos demais era o facto de conseguirem canalizar as suas necessidades egocêntricas para longe de si mesmos – mesmo sendo ambiciosos – tendo em conta o objectivo mais alargado de trabalharem para uma performance sustentável de longo prazo nas suas organizações.
A ideia de que os líderes devem estar ao serviço de um “bem maior” não é, de todo, nova. Mas, em particular nos últimos anos, o argumento tem vindo não só a ganhar força, como a constituir um requisito fundamental para as empresas que se querem distinguir das suas congéneres “normais”. E, nesta necessária transição do “eu” para o “nós”, são cada vez mais as “partes interessadas” a ter em especial conta. Não só devem os líderes servir os interesses alargados da organização, como também os dos parceiros com quem formam alianças estratégicas, sem esquecer, é claro, os das comunidades onde operam. Ter parceiros que se apoiam mutuamente resulta numa maior resiliência e estar envolvido com a comunidade local gera prestígio, o que é sempre positivo. O passo mais estrategicamente lucrativo desta transição será o de encontrar sinergias também com os seus parceiros de negócios e concorrentes, tendo em conta o alinhamento dos interesses do sector de negócio em causa e os interesses de longo prazo da sociedade.
Pressupostos para a liderança de serviço
Em 2007, o livro “Firms of Endearment” (com uma segunda edição em 2014) demonstrava a performance superior, e de longo prazo, de empresas que levavam a sério este “último passo”, identificadas pelos seus proeminentes autores [Rajendra S. Sisodia, David B. Wolfe, Jagdish N. Sheth] como aquelas que “tratam todos os seus stakeholders de igual forma” – um conceito similar ao defendido pela ACEGE quando fala de gestão e liderança à luz do amor ao próximo – tema do seu 6º Congresso, o qual vai ser debatido no seu primeiro painel, dedicado, exactamente, à “missão do líder”. Ainda no mesmo livro, os académicos que o assinam chamavam igualmente a atenção para outras características diferenciadoras dos responsáveis por estas empresas: o facto de todos eles se reconhecerem como parte integrante de um sistema económico com muitos participantes interdependentes, de estarem genuinamente comprometidos com o conceito (e acção) de “cidadania exemplar” e, por último, de todos eles abraçarem o conceito da “liderança de serviço”.
Este conceito é, por sua vez, consentâneo, com a cultura de valores e de propósito que, cada vez mais, reúne líderes e respectivas organizações em torno de objetivos comuns, numa resposta às principais tendências, desafios e oportunidades que se lhes colocam, na medida em que não parece existir alternativa (ou, em teoria, não deverá existir) a não ser a procura de um alinhamento entre lucro, ética e sustentabilidade.
Em 2010, e numa série de artigos publicados na Harvard Business Review, dedicados à “liderança no futuro”, uma das poucas mulheres a merecer genuinamente o epíteto de “guru da gestão”, como já escreveu o The Economist, Rosabeth Moss Kanter, professora, autora de inúmeros best-sellers e responsável pela denominada Advanced Leadership Initiative na própria Universidade de Harvard, onde lecciona há décadas, escrevia:
“Face à turbulência e mudança, a cultura e os valores transformaram-se na maior fonte de continuidade e coerência, renovação e sustentabilidade. Os líderes têm de ser ‘construtores’ de instituições que incutam na organização um significado que inspire hoje e perdure amanhã. [os líderes] Têm de procurar um propósito subjacente e um conjunto de valores fortes que sirva como base para decisões de longo prazo mesmo no meio de tanta volatilidade. Têm também de encontrar um propósito comum e valores universais que unam pessoas extremamente diferentes, ao mesmo tempo que permitam que as suas identidades pessoas sejam expressas e melhoradas. Na verdade, enfatizar o propósito e os valores ajuda os líderes a apoiar e a facilitar redes auto-organizadas que podem responder, de forma célere, à mudança, na medida em que todos partilham a mesma ideia relativamente ao que é certo fazer. (…) Têm de perceber o bem maior, ao mesmo tempo que encontram oportunidades na resolução de problemas societais para criarem inovações que abram portas ao futuro. Têm de procurar parcerias que os ajudem a cumprir missões, impossíveis de serem cumpridas por uma organização só. Têm de perceber o contexto alargado em que operam, ao mesmo tempo que têm de ter a visão para o alterar. A sua competência empresarial ainda é importante, mas ao adicionarem valores societais às avaliações financeiras, conseguirão criar uma instituição humana com significado, diferenciando-se de um mero acumular de activos impessoais”.
Assim escrevia Moss Kanter em 2010. E, até agora, todas as suas sugestões parecem continuar a fazer sentido. Resta saber se os líderes se limitam a lê-la.