“Para quê ter poder se não o usarmos para o bem?”

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J.Randolph Lewis criou, na Walgreens, um modelo de contratação para pessoas com deficiência, de sucesso e replicado em várias outras empresas - © DR

Para o antigo vice-presidente da Walgreens, J. Randolph Lewis, são demasiadas as vezes em que subjugamos os nossos valores e lealdade em troca de privilégios e poder. E dado que os líderes são investidos desse mesmo poder, encontrar formas de o usar para servir a empresa e construir o mundo que ambicionamos é mais do que uma necessidade. É um imperativo. Em entrevista ao VER, conheça o homem que “contratou uma força laboral que nunca ninguém iria contratar” – pessoas com deficiência – e que transformou esta sua iniciativa num modelo de negócio e numa filosofia de liderança replicada já em muitas outras empresas. Uma história de vida que daria para encher muitas páginas de um livro. O que já aconteceu
POR HELENA OLIVEIRA

Definição de NOGWOG [no greatness without goodness] [L. nil magnum nisi bonum, não existe grandeza sem bondade] 

  1. Nenhum feito pode ser considerado grandioso se for prejudicial ao bem comum;
  2. Uma filosofia de liderança cujas decisões procuram maximizar o benefício para todos; liderança ética; liderança altruísta; é sobre nós e não sobre mim;
  3. A crença de que é possível e desejável procurar conciliar as facetas díspares das nossas vidas e abraçar o melhor que existe em todas elas: por exemplo, alcançar a excelência, fazer um trabalho recompensador, fazer a diferença e fazer do mundo um local melhor; ser a mesma pessoa em casa e no trabalho; conciliar uma actividade empresarial e uma cidadania assentes no bem; fazer bem e fazer o bem

No Goodness Without Greatness poderia ser o título de um filme ficcional. É, na verdade, o título de um livro e a história nele narrada nada tem de ficção. Pelo contrário. O seu autor, J. Randolph Lewis, que virá a Portugal no âmbito do XXVI Congresso Mundial da UNIAPAC, é o precursor de um modelo de negócio inclusivo, o qual teve início em 1996, altura em que já ocupava o cargo de vice-presidente na gigantesca Walgreens. A iniciativa teve como base a ousada ideia de que pessoas com deficiência podem e devem ter as mesmas oportunidades de trabalho que os demais, contribuindo para a produtividade da empresa como os demais e gozando exactamente dos mesmos benefícios que os demais.

Pai de Austin, autista, Lewis afirma ter aprendido com o filho que “ser diferente” não é sinónimo de “não ser capaz”. Ao longo da sua carreira, e através de uma estratégia verdadeiramente revolucionária, criou milhares de empregos para pessoas com necessidades especiais, provando que é possível ter uma força de trabalho “mista”, onde o preconceito não tem lugar e que os “incapacitados” conseguem ser tão capacitados quanto os seus colegas de trabalho. O modelo tem vindo a ser replicado em outras empresas de grande dimensão e, depois de sair da Walgreens, Lewis fundou a organização sem fins lucrativos NOGWOG Disability Initiative, dedicada a expandir a contratação de pessoas com incapacidade no maior número de empresas possível tendo como inspiração a bem-sucedida experiência na segunda maior cadeia de farmácias do mundo.

Em entrevista ao VER, Randy Lewis partilha um pouco da sua história pessoal e profissional – que não se auto-excluem, pelo contrário – e assegura que, no mundo dos negócios, a melhor forma de responder à pergunta “devemo-nos dedicar a atingir os nossos objectivos de negócio OU a maximizar o nosso impacto positivo no mundo”, é com um “Sim”. Duplo.

Com o seu filho Austin, autista, Lewis aprendeu a ver “a pessoa” e a não se deixar “cegar” pela sua deficiência – © DR

“Por que motivo contratei uma força laboral que mais ninguém ousaria contratar”

Esta declaração cheia de força retirada de uma TEDx sua proferida em Napperville é um bom ponto de partida para a nossa conversa. É possível partilhar de que forma é que o seu filho – e nas suas palavras – o ensinou a ver as pessoas como elas são e não de acordo com a sua aparência e como perspectivou o facto de que uma empresa pertencente ao ranking 500 da Fortune poderia fazer uma verdadeira diferença no mundo dos negócios contratando pessoas com necessidades especiais?

O nosso filho Austin é autista e não falou até aos dez anos de idade. Tem agora trinta anos e quando as pessoas o conhecem, a tendência é sempre a de o subestimarem. Apesar de falar, tem alguma dificuldade em manter uma conversa típica, “andando para a frente e para trás”, sendo que o seu nível de leitura é equivalente ao do ensino básico. Neste caso, e se ele fosse como qualquer outra pessoa nas mesmas condições, nunca ninguém o contrataria.

Eu próprio o subestimei durante muito tempo, mas a verdade é que é ele que me tem vindo a surpreender muitas e muitas vezes. Ninguém iria acreditar que tem agora um emprego a tempo inteiro, com um salário que lhe permite viver condignamente e que conduz todos os dias durante uma hora para chegar ao trabalho. O Austin ensinou-me a ver a pessoa e a não me deixar cegar pela sua deficiência.

Desta forma, percebemos [na Walgreens] que existiam muitas outras pessoas com tipos diferentes de incapacidade que poderiam trabalhar nos nossos centros de distribuição se lhes fosse dada a oportunidade de demonstrarem as suas competências. Todavia, não existiam quaisquer empresas que tivessem feito esta “experiência”, em particular numa escala alargada.

Assim, pensei: “se nós não conseguirmos fazer isto, quem conseguirá? Quem melhor do que nós para demonstrar ao mundo que as pessoas com incapacidades podem fazer um trabalho tão bem como qualquer outra? E talvez se estabelecermos objectivos elevados – 30% da força de trabalho, com as mesmas funções e com as mesmas normas de desempenho – e formos bem-sucedidos, possamos criar um modelo que ajude outras empresas a fazer algo similar”.

Assim, abrimos o primeiro centro de distribuição em larga escala com estes mesmos objectivos em 2007 e o segundo em 2009. E a verdade é que ambos acabaram por ser os mais produtivos em toda a nossa história. Abrimos então as nossas portas e decidimos “oferecer” o nosso modelo, até mesmo à concorrência.

NOGWOG não só é o nome do website que aloja a sua Iniciativa para a Incapacidade, mas também uma filosofia de negócios e de liderança. Quais são os seus principais valores?

Nogwog é uma abreviatura de No Greatness Without Goodness [Não existe grandeza sem bondade, em tradução livre], que é também o nome do livro que escrevi sobre esta experiência e sobre tudo o que aprendi. E é o equivalente em latim de “nil magnum nisi bonum ”, que é também a máxima da Petit Seminaire School em Puducherry, na Índia, com a qual me deparei no romance A Vida de Pi, o qual me tocou muito profundamente. É uma evocação de que o trabalho mais importante e mais satisfatório é aquele que exige o melhor de nós e que também serve os outros.

Do ponto de vista empresarial, temos múltiplos stakeholders a quem servir – clientes, empregados, accionistas e a comunidade (sendo que e dependendo do tipo de negócio, a “comunidade” poder ser local ou global). Qualquer empresa que ignore qualquer um dos três primeiros stakeholdersnunca será bem-sucedida. Por outro lado, qualquer empresa que ignore o último está a perder uma oportunidade de conferir significado ao trabalho realizado pela sua empresa.

A liderança é um privilégio e confere o “tom” à organização. Ansiamos por líderes que mereçam ser seguidos – aqueles em quem confiamos, que são devotados à excelência e a nós, pessoas, e que não nos vejam como peças permutáveis. Líderes que nos ajudarão a ser bem-sucedidos, a fazermos trabalho com significado e a criar um ambiente que consiga retirar o que de melhor há em nós. Os líderes mais eficazes ajudam a não sermos meros pedreiros, mas sim construtores de catedrais.

Na medida em que os líderes de negócios gostam de números e estatísticas, é possível oferecer uma “perspectiva numérica” que demonstre quantas pessoas e empresas já foram impactadas pelo seu trabalho (primeiro na Walgreens) e devoção à promoção da inclusão no mundo empresarial?

Essa é uma pergunta que chega na altura certa. Com base nos resultados atingidos pela Walgreens, a National Governors’ Association nos Estados Unidos denominou-a [a iniciativa] como a “norma de ouro do emprego para pessoas com incapacidade”. A Walgreens continua a ser a anfitriã de executivos provenientes de centenas de empresas, de pequena e grande dimensão, que vêm ver com os seus próprios olhos como funciona este modelo e que se reúnem com gestores seniores e supervisores, os quais respondem a qualquer pergunta ou dúvida que tenham. E muitas dessas empresas já lançaram iniciativas similares utilizando este modelo. Por exemplo, tanto a Marks & Spencer no Reino Unido e a Best Buy têm agora centros de distribuição em larga escala onde pessoas com necessidades especiais compõem um terço ou mais das suas forças de trabalho. Outras grandes empresas a optar pelo mesmo modelo são a UPS, a Starbucks, a Toyota, a AT&T, a Apple, a Pepsi, a Crown Equipment e a Procter & Gamble.

Já a Walgreens alargou esta iniciativa a todos os seus centros de distribuição, os quais empregam actualmente quase duas mil pessoas com deficiência, prevendo-se que o número represente 20% do total da sua força laboral na área da logística até 2020.

Foi realizada uma pesquisa (depois transformada num paper) sobre gestores de equipa responsáveis por forças de trabalho com uma percentagem significativa de trabalhadores com capacidades limitadas. Um dos seus objectivos era o de detalhar “a evolução de gestores com um estilo de liderança tradicional, autocrático e com base em processos, comummente utilizado para atingir determinados objectivos de produção, para um estilo de liderança com base em relacionamentos e centrada nas pessoas”. Quais os resultados mais significativos deste estudo?

“Os líderes mais eficazes ajudam a não sermos meros pedreiros, mas sim construtores de catedrais”, Randy Lewis

A Anderson University publicou um estudo, vencedor de um prémio, sobre a mão-de-obra inclusiva da Walgreens que é composta por pessoas com incapacidade e pessoas “normalmente” capacitadas, que trabalham lado a lado, ganham os mesmos salários e estão sujeitas ao mesmo tipo de avaliação de performance. E concluiu que as pessoas com deficiência funcionam como um catalisador da mudança: ou seja, estimulam a que se passe de uma cultura centrada nos processos para uma outra centrada nas pessoas, o que resulta numa força produtiva mais comprometida, em melhores gestores e numa performance mais elevada.

Quando se trabalha com uma força laboral onde não existem pessoas com nenhum tipo de deficiência, o gestor tem uma percepção generalizada sobre as competências do trabalhador, sendo que o seu principal enfoque reside no alcançar dos objectivos de produção. Adicionalmente e numa cultura centrada nos processos, o empregado precisa de se adaptar ao estilo e normas de liderança do gestor.

Por seu turno, numa força laboral inclusiva, os empregados iniciam as suas funções com competências substancialmente diferentes e o gestor tem de trabalhar no sentido de alinhar e apoiar as capacidades de cada um deles para atingir os mesmos objectivos de produção, sendo ele próprio “obrigado” a aprender a resolver os desafios de cada membro da equipa. Assim, os gestores desenvolvem uma relação de autenticidade com os seus trabalhadores aprendendo a comunicar ao nível individual.

Ou seja, aprendem a determinar o que o trabalhador pode e consegue fazer, ao mesmo tempo que têm de divisar qual a melhor forma para criar condições e apoios para o mesmo. Os gestores aprendem também que é possível cometer erros e, mesmo assim, continuarem a liderar de forma efectiva. Como resultado, os gestores e os empregados que fizeram parte do estudo referem terem-se transformado em pessoas que têm uma paixão por servir os outros e que sentem o seu trabalho como intrinsecamente recompensador. Os objectivos de produção são excedidos como resultado de uma maior criatividade por parte do gestor e fruto de um maior envolvimento e compromisso por parte dos empregados.

E estes resultados são similares aos de outras empresas que tenho conhecido.

O seu motto “Para quê ter poder se não o usarmos para o bem” é também a história real da sua vida. No âmbito da temática que será central ao Congresso Mundial da UNIAPAC – os negócios enquanto uma actividade nobre – que tipo de “estratégia” utilizaria para “convencer” os líderes empresariais que fazer o bem não só é bom para as suas almas, mas também para os seus bolsos?

Qualquer coisa que façamos por um negócio deverá igualmente ser boa para a alma. Muitas das vezes limitamo-nos a enquadrar escolhas em termos de “uma coisa ou outra”. Por exemplo, qual será a melhor forma de responder à pergunta: devemo-nos dedicar a atingir os nossos objectivos de negócio OU a maximizar o nosso impacto positivo no mundo? A melhor resposta deverá ser “Sim”, o que irá estimular a criatividade, inspirar a força laboral e cativar os clientes.

Por exemplo, quando nos reunimos com o nosso Conselho de Administração sobre a construção do centro, assegurámos que o mesmo iria ser o mais produtivo de sempre e que teria um número alargado de pessoas com necessidades especiais, algo que nunca tinha sido feito anteriormente. Quando nos perguntaram se a nossa iniciativa para a incapacidade poderia entrar em conflito com o alcançar dos objectivos de negócio desejáveis, respondemos que iríamos fazer o ajustamento necessário para que o resultado fosse similar ao que por norma era atingido em qualquer outra iniciativa que fosse implementada na nossa organização.

Para retirar o melhor daqueles que iriam transformar esta iniciativa numa realidade, informámos os gestores e os membros da equipa sobre o que gostaríamos de fazer e por que motivo era importante. Quando eles nos perguntaram o que aconteceria se cometessem erros, respondemos que deviam aprender com os mesmos, ajustarem-se e seguirem em frente e que, caso fossem contra um obstáculo, arranjassem uma forma de o ultrapassar. Se e mesmo assim não tivessem sucesso, a ideia era que nos chamassem para tentarmos resolver a questão a partir do topo.

Dissemos também que o nosso padrão de desempenho seria “dormir bem à noite sabendo que demos o nosso melhor”. Ou seja, caso a iniciativa falhasse, iríamos dizer ao mundo que a mesma não se tinha concretizado porque tínhamos sido incapazes de a transformar em realidade. E a verdade é que continuamos a receber cartas de agradecimento por parte dos nossos clientes e de outros potenciais clientes quando estes ouvem falar do assunto.

Se considerarmos que a nossa única responsabilidade é maximizar o lucro para os accionistas, negamos a nós próprios, à empresa e aos nossos empregados a oportunidade de se trazer uma luz mais brilhante ao mundo. Um negócio em si mesmo não tem “alma”, mas se é para ter, tal deve-se ao facto de os líderes trazerem as suas (almas) para o local de trabalho. Infelizmente, defendemos determinados valores que, muitas vezes, são ignorados nas nossas vidas profissionais devido às “exigências do negócio” ou às expectativas dos accionistas. Isto é só uma outra forma de dizer que subjugamos os nossos valores e lealdade em troca de privilégios e poder. Os líderes são investidos de poder. E precisamos de encontrar formas de o usar para servir a empresa e construir o mundo que ambicionamos.