O sentido autêntico dos negócios

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O homem de negócios nobre é UM HOMEM INTEIRO: um só coração, uma só inteligência, uma só vontade, uma só vida completa. Nada de compartimentos escondidos e separados, com regras, nobrezas e éticas diversas.

A participação dos cristãos no mundo da economia e dos negócios não pode apoiar-se apenas no apego às convicções próprias: tem de se fundar solidamente, também, em ideias claras sobre os temas humanos e técnicos mais essenciais desses grandes campos da actividade social. Sem compreendermos a “lógica das coisas” não conseguiremos enfrentar com serenidade a enorme maré de preconceitos e palavreado com que diariamente somos bombardeados pelo azedume e pela demagogia da nossa sociedade. E teremos de nos render a esse ambiente de falsas generalidades, reduzindo-nos provavelmente aos slogans do “politicamente correcto” e, na melhor das hipóteses, à defesa bem-intencionada dos mais desfavorecidos.

Se é certo que a actividade económica parte da struggle for life, da luta pela vida, e que esta começa, na dimensão mais elementar, na luta selvagem e animal pela sobrevivência, não o é menos que o homem inteiro se eleva progressivamente sobre esse dimensão, elementar mas indiscutível, da sua natureza, derramando sobre a sua vivência económica a abundância ou escassez das restantes “camadas” do carácter próprio que tiver em construção.

Foi isso que penosamente foi construindo ao longo da história humana, a partir da simples disputa física pelos bens da subsistência vital: a descoberta das potencialidades da troca colaborante e o desenvolvimento progressivo das suas vantagens como instrumento de uma personalidade cada vez mais livre, mais ambiciosa e mais nobre, na construção de uma realidade melhor. Cada pequeno passo proporcionou novas perspectivas, novos desafios e novos avanços. O aperfeiçoamento dos meios de troca até chegar ao dinheiro, a especialização do trabalho, a concentração de pessoas e meios em empreendimentos colectivos e a institucionalização da empresa foram construindo sucessivamente a actual economia real.

E o aperfeiçoamento do dinheiro no manuseamento da economia real foi o que conduziu à progressiva construção dos sistemas financeiros. Não é possível entender-se hoje, plenamente, o mundo dos negócios, e agir nele com mínima destreza, sem compreender e/ou manusear razoavelmente os instrumentos basilares da economia real e do funcionamento dos sistemas financeiros. Na economia real não se pode prescindir da noção de preço como valor, como medida da utilidade de cada bem ou serviço para os que o compram ou utilizam. E também da noção de custo, como soma dos valores dos recursos utilizados para os produzir. Sem prejuízo do muito que há a desenvolver para captar plenamente os mecanismos da formação dos preços e as regras a que devem estar sujeitos para desempenhar com racionalidade a sua função social, aquelas noções elementares permitem desde logo introduzir a noção de lucro como diferença entre o valor ou utilidade dos bens produzidos ou dos serviços prestados e os respectivos custos de produção ou prestação

Assim visto o lucro, capta-se com facilidade a sua importância como medida saudável da actividade dos empreendedores que o realizam: quanto maior ele for no âmbito de uma actividade legítima, maior será a utilidade social dessa actividade.

Mas isto, claro, apenas se e na medida em que os preços de venda e os preços dos factores de produção reflectirem correctamente, e respectivamente, a utilidade produzida e o sacrifício de meios que foi suportado para a realizar. Aí estão todo um campo de aprofundamento sobre os mecanismos e as normas que devem estar envolvidos para assegurar tais requisitos essenciais. Da mesma forma, não se pode prescindir de entender a importância e utilidade do dinheiro como meio de pagamento, instrumento universal de troca, unidade polivalente para a medida dos valores e utensílio eficiente da poupança e da sua canalização para o investimento. Entender-se-á assim melhor como a disponibilidade do dinheiro tem de ser retribuída – juro – em função da duração da sua utilização e do risco e rentabilidade a ela associados em cada aplicação.

A falta de compreensão de tais realidades básicas tem sido causa de inúmeros juízos levianos apostados em menosprezar e desaproveitar a enorme utilidade social do conceito de juro e dos modernos instrumentos que manuseiam o risco no âmbito do funcionamento dos sistemas financeiros.

É preciso compreender-se que o risco, também e sobretudo nas actividades financeiras, tem um custo, ou seja, um valor: tem de ser adequadamente retribuído a quem o corre na realização de um negócio útil ou a quem o assume para benefício de quem se vê livre dele. Os riscos financeiros, como os riscos associados aos chamados “ramos reais” das actividades seguradoras, podem e devem com vantagem social ser negociados autonomamente e livres das acusações de “especulação” e “diversão de casino” com que têm sido agraciados por opiniões que têm tanto de ignorância como de ressentimento de classe.

O cristão tem de ser especialmente sensível à realidade social indiscutível de que a noção de intercâmbio é absolutamente central em todas as operações económicas, de negócio: o preço que se cobra da prestação e o lucro que com ela se realiza só têm justificação e legitimidade como contrapartida adequada do bem ou serviço prestados e não seriam mais que saque, roubo ou rapina na ausência destes. Assaltar bancos ou vigarizar incautos não são actividades de negócio mas actos de criminalidade ou pirataria, mesmo quando disfarçados pelos ornamentos das relações públicas e da publicidade ou pelas complexidades da tecnologia.

A promoção do acto de intercâmbio tem, ou deve ter, da parte do agente económico, ou empresário, que o promove, duas motivações essenciais: uma, centrada em si próprio, que é o legítimo ânimo de lucro, e outra, projectada a partir de si próprio, que é o impulso criador ou benfazejo de proporcionar, disponibilizar bem. E esta dimensão projectada para o exterior do empresário tem, por sua vez, duas dimensões ou destinos: a que se compreende na troca directa entre o empresário e o seu cliente em cada uma das operações que realizam, e a que, explicitamente ou de forma meramente implícita, exprime a responsabilidade social do empresário, a sua resposta positiva e criadora no intercâmbio da sua iniciativa com a sociedade em que a sua actividade se exerce.

O colectivo é, assim, componente absolutamente essencial da actividade empresarial, por mais
liberal que seja a sua inspiração ou o seu ânimo. Na sua acepção mais completa, os próprios bens ou serviços honestamente disponibilizados pelo empresário aos seus clientes devem “conter” um autêntico serviço social absolutamente compatível com o seu ânimo primário de lucro e com as motivações mais gerais da nobreza do seu carácter.

O colectivo é também, cada vez mais, um fundamento da própria actividade produtora do empresário.

A especialização do trabalho e o impulso económico e social para a dimensão na actividade
Económica – pela produtividade, pela necessidade de financiamento e pela protecção contra riscos cada vez maiores – impõem que a tarefa dirigida para o lucro seja cada vez mais colectiva, com o empresário encabeçando e fazendo convergir uma diversidade de vontades e de factores.
O empresário moderno tem de assumir o colectivo para ser eficiente e para ser eficaz no serviço que presta aos outros. Nada há que estranhar, portanto, que aquilo que faz sentido do ponto de vista do seu interesse pessoal seja também aquilo que faz sentido do ponto de vista social. Como sempre seria de esperar, as harmonias propriamente humanas não são simples acasos ou coincidências: o que é pessoalmente mais nobre é também humanamente mais eficaz e conduz efectivamente ao bem. É, portanto, mais moral e acarreta mais êxito em todos os sentidos.

Esta conclusão consolida a legitimidade e a utilidade social da promoção empresarial mas não implica que se tenha o Estado como supérfluo na actividade económica. De facto, o Estado, movido pela defesa necessária do interesse público, do maior bem, não é dispensável nas muitas componentes da sua missão: como autoridade reguladora, como autoridade fiscalizadora e eventualmente repressora, como agente de redistribuição do produto dessa actividade através de uma política fiscal em benefício dos que carecem de, e justificam, protecção. Mas sempre sem se sobrepor às mesmas exigências de nobreza e ao princípio fundamental de que a sua acção não se justifica por si própria mas apenas na medida (subsidiariedade) em que seja necessária para acrescentar bem ou compensar insuficiência, ou deficiência, do dinamismo dos particulares.

A riqueza é o benefício acumulado do trabalho e do negócio e transmite-se por doação – a livre disposição do seu proprietário sobre ela – e por herança. O direito à transmissão familiar da riqueza por herança é particularmente reforçado por estar implícito, ou ser consequência, do carácter anterior, ainda mais fundamental, dessa grande instituição natural que é a Família e do seu direito à propriedade. Este ponto de vista é diametralmente oposto ao do marxismo, para quem a Família não passa de instituição sem dignidade, simplesmente induzida pela necessidade de transmissão da propriedade. Também aqui o marxismo é obviamente uma inversão do pensamento cristão, o cristianismo “de pernas para o ar”. O tamanho da fortuna própria não é factor de enaltecimento ou de depreciação do seu proprietário. A dignidade e a legitimidade da riqueza que se adquire depende da legitimidade e da dignidade da aquisição. E a dignidade e a legitimidade da riqueza que se mantém depende da legitimidade e da dignidade do uso que se lhe dá. A fortuna não acarreta simplesmente privilégios, antes impõe
enormes responsabilidades.

Também aqui se aplica a essencial noção do intercâmbio como elemento estrutural da vida económica. A apreciação dos aspectos éticos dos negócios culmina a aquisição, dentro do que é possível e razoável nas circunstâncias desta exposição, de ideias claras sobre os seus aspectos básicos. E também aqui são necessárias ideias claras.

A ética debruça-se, essencialmente, sobre a existência e o conteúdo de princípios reguladores aplicáveis à conduta humana. É o ramo da filosofia que se ocupa dos princípios morais, quer dizer, das normas de conduta que encaminham para o bem. Para os cristãos, esta direcção é clara e é vital: a Fé ajuda-nos a descobrir o que nos pode conduzir ao bem e a iluminar a nossa consciência – último e radical elemento de decisão – nessa direcção.

Tal como em tudo na vida, ter moral nos negócios, e mostrá-lo e explicá-lo sem complexos e com coragem, não é nada antiquado, nem estúpido, nem efeminado: implica o recurso a alguma “virilidade”, exprimindo-nos numa linguagem algo machista mas muito iluminadora. Isso vive-se com personalidade e naturalidade.

Também nos negócios, a moralidade implica a legitimidade dos actos e a nobreza dos fins ou intenções. O elemento essencial da legitimidade dos actos de negócio (como de todos os outros) é a subordinação vital da pessoa à realidade integral: veracidade, respeito pelos valores e pelos outros, incluindo particularmente a contraparte e as instituições legítimas. A veracidade implica não enganar, não mentir. E ter em conta a realidade objectiva de que o intercâmbio em todas as suas dimensões é um elemento essencial do negócio.

Praticar a Justiça é imposição da realidade dos valores e, especialmente, dos que residem nos outros: não ignorar o que lhes é devido, e às instituições, designadamente à luz do intercâmbio, da troca social. O mesmo se diga quanto ao respeito pela liberdade dos outros, que recusa simplesmente a coacção, a fraude e a manipulação: violam os seus direitos à Verdade, à Liberdade e à Justiça. No campo dos fins ou motivações dos actos de negócio é necessário partir-se da noção de que a acção humana tem implícita uma graduação de nobreza nas intenções que se enraíza na nobreza de carácter.

A motivação do homem de negócios resulta de uma composição entre o interesse próprio no lucro, o ânimo de satisfazer o cliente, a contra-prestação proporcionada à sociedade, e o desejo em geral (também patriótico, evidentemente) da construção e da promoção do Bem. Depois, o homem de negócios usa a sua riqueza com a mesma nobreza com que realiza os seus negócios.

Nessa escala da nobreza, o cume mais elevado é a contribuição para a Criação contínua do mundo, como trabalho de colaboração com a tarefa Divina no caminho próprio e dos outros em direcção à Eternidade. É o Amor. O tema da moralidade nos negócios não dispensa uma consideração das dificuldades que, nesse campo, a violência e a hipocrisia das sociedades modernas acarretam às pessoas de bem. A ponderação das muitas circunstâncias que podem influir nas decisões da consciência em cada situação, pode ter em conta aqueles factores de decisão mas não pode ignorar os princípios gerais das normas morais.

O homem de negócios nobre é UM HOMEM INTEIRO: um só coração, uma só inteligência, uma só vontade, uma só vida completa. Nada de compartimentos escondidos e separados, com regras, nobrezas e éticas diversas.

Alberto Ramalho Fontes
PORTO 2011