Comandante? Não, catalisador

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Planos estratégicos, multianuais e detalhados? Acabaram. Emprego para a vida? Depende de quantas vidas couberem na sua. Estruturas organizacionais hierárquicas? Esqueça. Colaboradores que não têm uma palavra a dizer sobre o negócio? Nem pense. Tácticas testadas e bem-sucedidas para bater a concorrência? Vai ter de inventar melhor. Aumento de regalias para motivar empregados? Não chega. Deixar o negócio e ir caçar Pokemóns? Bem, também não é preciso exagerar… Saiba o que significa ser um “ARTful leader” de acordo com o professor de Harvard, Eric McNulty, que esteve em Lisboa a convite da AESE Business School
POR
HELENA OLIVEIRA

Sim, é verdade que (quase) tudo o que tínhamos como dados adquiridos no mundo dos negócios se eclipsou, mas não é por isso que ser líder empresarial deixou de ser interessante. Pelo contrário. Quanto maior é a vulnerabilidade, a incerteza, a complexidade e a ambiguidade – ou o que corresponde ao denominado mundoVUCA – mais inspiradora se torna a liderança. A única diferença é que, tal como tudo mudou, também os líderes e as organizações que lideram têm de acompanhar os ventos da mudança. E se nem sempre será fácil, uma coisa é certa: tédio e letargia não fazem parte dos traços que caracterizam o ambiente de negócios da actualidade. A não ser que a sua organização continue a obedecer a modelos obsoletos que só contribuirão para a sua extinção.

Eric Mcnulty foi um dos oradores convidados para o Encontro de Alumni da AESE Business School, o qual teve lugar em Lisboa, no passado dia 08 de Julho e que teve como cenário o mundo VUCA (V. artigo nesta newsletter) e a forma como as empresas se devem adaptar a uma realidade em que a única certeza que existe é a incerteza. Adequadamente intitulado “Liderar na (in)certeza”, o evento contou com a presença do reconhecido professor de Harvard e cuja intervenção se centrou na denominada “ARTful leadership”, a qual assenta em três valores fundamentais (e que explicam o acrónimo em inglês ART, no que à gestão diz respeito): capacidade adaptativa, resiliência e confiança. Todavia, esta liderança ‘ARTful’ está igualmente relacionada com a imaginação e a criatividade, duas características diferenciadoras que, para McNulty, são comuns aos líderes eficazes da actualidade.

O exercício de liderança é cultivar a criação de valor, e não a sua extracção, tal como era comum nas organizações da era industrial

Em declarações à AESE, o também autor e consultor americano declarou que “os bons líderes estão sempre a fazer perguntas porque querem saber mais e compreenderem-se melhor a si mesmos, às pessoas que esperam vir a liderar e ao contexto em que devem operar”, acrescentando ainda que, no universo turbulento da actualidade, estes devem “estar confortáveis com a ambiguidade”, assegurando ainda que “o pensamento linear e de curto prazo é cada vez menos produtivo”.

Todavia, são ainda muitas as organizações que apesar de viverem claramente na era digital, não conseguem arrancar as raízes que as aprisionam a modelos hierárquicos de comando e controlo mais do que ultrapassados, que continuam a acreditar que a tomada de decisão só é possível para os que se sentam no topo, que a informação e o conhecimento devem manter-se guardados numa gaveta à qual só um conjunto de eleitos tem acesso e que os clientes são meros receptores dos produtos e serviços que têm para oferecer. Pior ainda, são organizações que não compreenderam que o líder já não é um comandante, mas um catalisador, e que o seu sucesso depende directamente da capacidade em motivar, envolver e despertar a imaginação de todos aqueles que o seguem: sejam eles colaboradores, clientes, parceiros de negócio e até concorrentes. Ou, como escreve o próprio McNulty, “o exercício de liderança é cultivar a criação de valor, e não a sua extracção, tal como era comum nas organizações da era industrial”.

Em conjunto com os vários materiais produzidos pelo autor sobre esta nova abordagem à liderança, o VER traça, de seguida, o “perfil de líder” que, de acordo com McNulty, terá as melhores condições para se adaptar – e vencer – no actual contexto de mudança radical em que vivemos. E tendo em conta as principais características que definem o seu “ARTful leader”.

Capacidade adaptativa e apostar na “nossa história” e não na “minha história”

© DR
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De acordo com Eric Mcnulty, a capacidade adaptativa implica a habilidade para se prosperar, ser ágil e proactivo ao longo de períodos caracterizados por contextos de mudança acelerada. Os seus elementos constantes assentam num enfoque permanente na missão, valores e na melhoria contínua da qualidade, em oposição aos títulos/cargos, funções e até ao espaço físico. Ou, como escreve o autor, estas últimas características deverão ser maleáveis e estarem ao serviço das primeiras.

Nas organizações tradicionais, a estrutura formal é premiada, existindo um enorme valor no que respeita ao conhecimento de todos os seus meandros, o que ajuda a percepcionar melhor os riscos e as recompensas afectas ao status quo. Para prosperar, é aconselhável participar de alguma aliança e das intrigas “politiqueiras” em vez de colocar o enfoque nos clientes. A mudança é sempre entendida como uma ameaça na medida em que desvaloriza a base de conhecimento vigente, sendo que as alterações na estrutura podem deixar os trabalhadores abandonados à sua própria sorte. Afirmando que ele próprio, e numa empresa em que trabalhou, passou por múltiplas reorganizações que substituíam um modelo estático por um outro similar em busca da estrutura perfeita, McNulty sublinha ainda que cada uma destas tentativas de mudança tinham lugar em empreendimentos do “topo para as bases”, sendo que eram os (poucos) do topo que se congratulavam pela sua visão e sabedoria. O problema é que eram demasiadas as vezes em que, apenas num espaço de um ano ou dois, regressavam ao ponto de partida e voltavam a repetir tudo de novo.

Em oposição total, os líderes artful aceitam a mudança como a melhor possibilidade para aprenderem e melhorarem. Em primeiro lugar, porque compreendem que não é possível desenhar organizações que consigam estar em linha com o nível de complexidade em que operam. E quando esta dicotomia é ignorada, o que acontece é que a imposição de “estrutura” acaba por impedir o funcionamento da própria organização.

Quando a aprendizagem consiste no principal valor, em conjunto com o propósito central de uma organização, existe uma consciencialização de que o presente nunca pode ser o destino final

Assim, e para o professor de Harvard, as organizações artful não são mais do que Peter Senge, do MIT, David Garvin, da Harvard Business School, e vários seus seguidores, apelidaram, e já há algumas décadas como a “learning organization”, ou seja, como as empresas, em todos os seus níveis e colectivamente, estão em constante aprendizagem e a tentar melhorar, continuamente, a sua capacidade para criar aquilo que realmente desejam criar. Para McNulty, quando a aprendizagem consiste no principal valor, em conjunto com o propósito central de uma organização, existe uma consciencialização de que o presente nunca pode ser o destino final. Adicionalmente, o líder deverá promover esta aprendizagem e realizar “revisões pós-acção” centradas em quatro questões fundamentais: O que era suposto acontecer? O que aconteceu verdadeiramente? O que teremos a certeza de que voltaremos a fazer na próxima vez? O que queremos mudar no futuro próximo?

Estas avaliações deverão constituir uma rotina na organização e funcionar como exercícios de críticas construtivas que orientem as pessoas para a melhoria contínua da qualidade. Há, no entanto, que assegurar que todos os elementos da organização se sintam a jogar no mesmo lado do campo, que todos têm liberdade para expressar a sua opinião ou, como resume, enfatizar o sistema e não o indivíduo. Em declarações à AESE, McNulty sublinha a urgência de, para se motivar toda uma empresa, é necessário que se escreva “a nossa história” e não “a minha história” [relativamente ao líder, é claro], acrescentando ainda que “muitas vezes, são despendidos muitos esforços na elaboração de incentivos e não os suficientes na definição de um propósito maior para as acções da empresa”.

Ou, em suma, os bons líderes da actualidade promovem e inspiram esta capacidade adaptativa através do questionamento contínuo, o qual estimula todo o sistema a descobrir o que é provável acontecer a seguir.

Resiliência: o primeiro momento em que se sente alguma esperança perante a adversidade

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Muitas pessoas consideram a resiliência como a capacidade de se reagir ao presente, mas McNulty afirma que resiliência é reagir, sim, mas tendo em conta o futuro. Dado que o tempo só se move numa única direcção, a verdade é que nunca se volta ao que já foi. A resiliência pode também ser definida como perseverança e como o primeiro momento em que se sente esperança perante uma adversidade. Ou, e em suma, é saber cultivar o sentimento do “nós somos capazes”.

Em particular no mundo VUCAST (v. artigo nesta newsletter) e porque vivemos rodeados de turbulência, a resiliência é absolutamente necessária e, sendo também sinónimo de perseverança e,dada a centralidade da inovação na economia do conhecimento, exige também uma compreensão profunda do fracasso. Ao contrário do que muitos pensam, inovar requer grandes doses de experimentação e de tropeções. Ou, como afirmava Einstein, “o fracasso é o sucesso em progresso”. Mais ainda, ganha-se imenso em encarar o fracasso como um momento de aprendizagem. O que não significa, obviamente, que se tenham grandes doses de tolerância no que respeita à incompetência ou à negligência, mas sim que não nos podemos esquecer que ninguém é perfeito e que há que correr riscos para se alcançar a capacidade de adaptação.

Muitas pessoas consideram a resiliência como a capacidade de se reagir ao presente, mas McNulty afirma que resiliência é reagir, sim, mas tendo em conta o futuro

Em particular para os líderes, é crucial que percebam que o medo de falhar reprime a vontade das pessoas para oferecerem ideias, demonstrarem iniciativa ou para agirem. É que, quando ocorre o oposto, que acontece é que toda a gente adopta a posição “olhos no chão”, a qual só serve para que ninguém contribua com o seu melhor. No livro de John Danner e Mark Coopersmith, intitulado “The Other F Word”, e que é dedicado ao enaltecer do fracasso, os autores apelidam este medo de um “multiplicador da força do falhanço”, porque este “distorce a probabilidade do fracasso e exagera as suas consequências”. Os autores oferecem uma abordagem que inclui o ensaio de grandes e potenciais fracassos para que seja possível desenvolver “reflexos mais fortes”. Ou seja, e sobretudo para os líderes, aceitar que o falhanço é não só natural, como também central à sua capacidade de resiliência é crucial.

Por outro lado, quando somos obrigados a liderar num contexto de VUCAST, torna-se muito mais fácil se for criado um ambiente de “segurança psicológica”, no qual os riscos interpessoais são protegidos e até recompensados. Citando Amy Edmondson, também da Harvard Business School, e que cunhou o conceito, McNulty afirma que para as equipas de alta performance esta é uma marca distintiva: “se nunca lá estivemos antes, não podemos saber o que irá acontecer; e temos que jogar com os cérebros e vozes de toda a gente”. A segurança psicológica está, também, profundamente inter-relacionada com as características das “learning organizations”.

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CONFIANÇA ou o líder como porto seguro

O terceiro elemento da liderança ARTful é a confiança enquanto fundamento de uma cultura baseada em valores. Num mundo VUCAST, o “U” (que corresponde à palavra incerteza em inglês) é verdadeiramente assustador: as dúvidas assumem um lugar predominante e é natural que as pessoas se pretendam agarrar a algo sólido. E quando olham para o líder, querem ter a certeza que ele sabe o que está a dizer e, mais importante, que sente o que está a dizer. Querem também sentir que estão protegidos e, mais importante que tudo, que o líder age com vista aos seus melhores interesses, em conjunto com os seus próprios.

Nunca a confiança foi tão importante para a liderança como agora

Já o “T” de transparência gera, igualmente, muita preocupação, porque até mesmo – ou em particular – nas organizações tradicionais, o líder está sob permanente escrutínio. A verdade é que na actualidade a transparência é ubíqua e o impacto de qualquer declaração ou cada escolha feita pelas empresas são de imediato disseminadas e podem ser amplificadas a uma velocidade estonteante. E o pior de tudo é que poderão persistir para sempre. O que é o mesmo que dizer que um líder de confiança nunca foi tão importante, o que implica também, por parte do mesmo, enormes doses de disciplina e compromisso.

Uma das abordagens ancoradas à liderança baseada na confiança é a denominada liderança de serviço. E, de acordo com Robert Greenleaf, que originalmente articulou a ideia, esta é a sua definição de líder “que serve”:

“Um líder ‘servidor’ concentra-se, antes de mais, no crescimento e no bem-estar das pessoas e das comunidades a que estas pertencem. Enquanto a liderança tradicional envolve, na esmagadora maioria das vezes, a acumulação e o exercício de poder em uma só pessoa no ‘topo da pirâmide”, a liderança de serviço é diferente. O líder que serve partilha o poder, coloca as necessidades dos outros em primeiro lugar e ajuda as pessoas a desenvolverem-se e a ter uma performance o mais ‘elevada’ possível”.

Adicionalmente, são numerosos os estudos que correlacionam a liderança de serviço com níveis elevados de confiança. E num deles, publicado recentemente, e que analisou os trabalhadores de uma empresa de tecnologia e produção canadiana, a correlação entre a liderança de serviço e os níveis de performance não deixa margens para dúvidas: o trabalho sempre em dia, uma boa relação entre colegas e o enfoque no propósito alargado da empresa. O que mais pode um líder desejar?, questiona McNulty. O que mais precisa uma organização para competir e prosperar? Os investigadores responsáveis por este último estudo defendem assim que e por parte do líder “que serve”, o reconhecimento do valor de cada um dos indivíduos e o investimento no desenvolvimento das equipas ajudaram a ir ao encontro das necessidades psicológicas de competências do empregador, bem como no que respeita à autonomia e ao sentimento de pertença.

Como afirmava Einstein, ‘o fracasso é o sucesso em progresso’

Por outro lado, a liderança de serviço está igualmente alinhada com a fluidez necessária a uma organização ARTful. Ao investir largamente no desenvolvimento dos empregados, ao partilhar o poder e ao praticar um enfoque na missão acima do auto-interesse individual, o líder “servidor” aproveita as grandes doses de capacidade e competências existentes nas organizações que lidera. O sucesso depende menos da sabedoria da hierarquia e muito mais do compromisso colectivo de indivíduos talentosos face a um propósito partilhado por todos.

Em tempos conturbados, empregados, investidores, clientes e outros stakeholders gravitam em torno de organizações que se mantêm fieis aos seus valores enunciados. O trabalho elaborado, por exemplo, no Center for Higher Ambition in Leadership [do qual McNulty faz parte] ou pela Shared Value Initiative (sobre a qual o VER tem vindo a escrever, entre outras, têm vindo a demonstrar o potencial para criar valor financeiro e social em simultâneo. E as organizações que adoptam um propósito mais elevado em conjunto com a busca pelo lucro estão a usufruir de uma vantagem no que respeita à captação de talento, a alianças estratégicas e ao apoio das comunidades em que se inserem.

Em tempos conturbados, empregados, investidores, clientes e outros stakeholders gravitam em torno de organizações que se mantêm fiéis aos seus valores enunciados

Como termina Eric McNulty, é verdade que você, enquanto líder, a sua equipa e a sua organização irão encontrar desafios, mas também excelentes oportunidades no mundo VUCAST. Os dias dos planos estratégicos e detalhados para vários anos terminaram e a execução linear está cada vez mais esbatida. Deveremos apostar num plano de jogo? Claro que sim. Mas será expectável que o mesmo se mantenha inalterado durante muito tempo? Claro que não. A sua verdadeira bússola enquanto líder deverá ser a da clareza: do propósito alargado que tem em mãos, dos valores duradouros que o irão orientar e das medidas do sucesso. E a clareza e a consistência destes elementos poderão funcionar como um argumento poderoso que ajude a dominar os vendavais existentes no mundo VUCAST.

Todavia, sublinha o consultor, a clareza exige também que o líder adopte o enfoque como um verbo e não como um substantivo. Não vale a pena desenvolver a declaração perfeita da missão e pendurá-la na parede. É imprescindível que se mantenha constantemente sintonizado no que respeita a possíveis distorções e anomalias, aperfeiçoando e refinando a sua compreensão de onde está e do que precisa – e deseja – para estar sempre preparado.

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