“Esta crise é mais vasta do que as outras”

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João César das Neves é economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas
Foi o crescimento económico e não a caridade que arrancou à situação de pobreza, 500 milhões de pessoas nos últimos 10 anos e 1400 milhões de pessoas nos últimos 25 anos, afirmou o economista João César das Neves no almoço-conferência da ACEGE, que se realizou na última semana

Por VITOR NORINHA

O que justifica a actual crise financeira? À pergunta, o economista e professor universitário, João César das Neves prometeu responder de acordo com o senso comum e aproveitou o último encontro da ACEGE para enquadrar o fenómeno, explicá-lo, caracterizá-lo e antecipar alguns cenários.

A explicação de que a crise actual é motivada pela “ganância e estupidez tem muita verdade”, afirmou. Mas, adiantou: “se (a crise) fosse causada (apenas) pela ganância e estupidez estaríamos sempre em crise”. Mas esta não deixa se ser uma explicação que releva a velha tese das lutas de classes e que também se encaixa com os dogmas da fé e que confirma os ódios entre as pessoas.

O economista quis dar uma explicação racional e que o comum das pessoas entendesse e, por isso, fez uma caracterização global do ambiente. Desde logo, afirmou, “a nossa opinião sobre a banca está enviesada. (…) porque ou se trata de ladroagem, (…) ou de malandragem”.

E, efectivamente, o que está a acontecer não se pode considerar único, pois um estudo do FMI revela que ocorreram 124 crises no sistema financeiro em 100 países nos últimos 37 anos, ou seja desde meados de 1970. Estes números são apenas de crises bancários, destacando-se as quatro na Argentina, mas também se poderia ir buscar as do Congo, da Turquia, do Brasil, da República Dominicana ou da Islândia. A Espanha teve a sua crise em 1977, os EUA em 1988 e o Japão em 1997.

A inovação  
O professor sublinha que “esta crise é mais vasta do que as outras”, e isso tem a ver com o sistema onde estamos envolvidos. O sistema “deu-nos inovação com uma prosperidade extraordinária” que resultou no arranque à situação de pobreza de 500 milhões de pessoas nos últimos 10 anos e que chegam aos 1.400 milhões se se contabilizar os últimos 25 anos. “Este fenómeno extraordinário foi (devido ao) crescimento económico, não foi a caridade”, refere César das Neves.

O sistema baseia-se na “experiência, inovação e na globalização e todos sabem que não há almoços grátis e, por vezes, não corre bem. Se se estivesse num sistema controlado (nada disto) teria acontecido”, afirma o economista que remate que “esta crise é o sucesso do arranque de centenas de milhões (de pessoas) da situação de pobreza.”

Dito isto, César das Neves disse aquilo que parece, mais uma vez, do senso comum: “A intervenção das Autoridades é hoje mais complexa do que o era até agora”. E adianta que a questão da crise tem de ser vista na economia real, não no sector financeiro, embora o “ruído” seja do sector financeiro”. Aquilo que vê é “dramatismo e nervosismo” justificado e isso é o “veneno” da crise”.

Neste ponto César das Neves faz o ponto de situação e afirma taxativamente: “Não aconteceu nada em Agosto de 2007”. Adianta: “Estas crises financeiras são causadas pelo clima. Cresce “oco” e cria-se o clima e qualquer faúlha incendeia o processo.

Sector financeiro versus sector real da economia
Na explicação de todo este processo, o interlocutor frisou algo que parece do senso comum mas que, muitas vezes, falha na análise: não se pode confundir o sector financeiro com o sector real da economia. O dinheiro, afirma, “é sempre uma entidade pública e as entidades financeiras são as mais regulamentadas”.

Os próprios administradores têm de ser aprovados pelo Estado e, na prática, “os bancos funcionam como com uma concepção pública” e, nesta lógica, argumenta o professor, “quando há uma quebra na confiança da banco, o Estado tem de intervir. Situação diferente é a nacionalização”. E, acrescenta que tudo o que está a acontecer não tem nada a ver com o “keynesianismo”, mas tem antes a ver com o “monetarismo”.

Se se recuar a 1929, a derrocada das poupanças aconteceu porque “o Estado não cumpriu as suas funções”. Na situação actual, a intervenção pública nada tem de dirigismo, tem antes a ver com uma necessidade de intervir para compensar a quebra de confiança.

Razões próximas da crise  
Aquilo que aconteceu nos últimos meses, decorre da introdução de um produto financeiro novo e sempre que aparece algo novo, “há vítimas”. César das Neves lembra a primeira grande crise financeira que ocorreu no último quartel do século XVIII com o aparecimento do primeiro banco. Também o aparecimento do papel-moeda levou a uma outra crise que se traduziu a hiperinflação.

Mas aquilo que provocou o “credit crunch” é, na óptica de César das Neves, um “produto poderoso” que “permitiu o acesso ao crédito, dispersando o risco com a titularização desse mesmo crédito. É isto o subprime. Na prática, este crédito a pessoas com reduzidos recursos era convertido em títulos e repassado a outras pessoas a título de investimento. A má utilização gerou uma crise sem precedentes, uma situação que poderá, no futuro, atingir o sistema de microcrédito.

Disto isto desta maneira, a solução “não é deixar de dar crédito aos pobres porque simplesmente não pagam”, refere o economista.

O grande problema do momento é contabilístico porque foi feita a dispersão do risco, mas não se sabe onde está o “buraco”. A grande questão é saber se “o outro banco tem o buraco” e isso levou ao pânico e à incerteza devido à existência de um processo descontrolado, já que com a globalização, espalharam-se os referidos títulos.

César das Neves lembra uma afirmação de Keynes: “Este jogo é como o concurso de beleza onde se vota na rapariga que os outros acham melhor”.

O que fazer  
O sistema rebentou e aquilo que aconteceu foi um risco financeiro ou de negócio. O maior problema era se se tornasse num risco sistémico ou seja, se vários bancos perderem e todos os países começarem a perder, pois a regra é de que “se vários bancos tiverem dificuldades, todo o país terá um problema”.

Esta é uma situação parecida à de um “vulcão” com os mercados a “explodir e depois a ajustar”.

Há várias fases no tratamento mas importa saber quando é que os bancos centrais têm de intervir e quando é que a crise financeira passa a crise sistémica. Greenspan, o ex-presidente da FED, lamenta ter intervindo demasiado cedo, porque deixou ficar os problemas. No passado mais recente, as Autoridades aprenderam e deixaram o sistema tentar as suas próprias soluções. A crise agudizou-se em Outubro de 2007 quando os vários bancos centrais quase passaram a fase do insulto sobre a estratégia a tomar pelo Banco Central Europeu.

Na 1.ª fase do problema foi feito um trabalho de contenção e controlo do pânico. É um período de recaídas mas, onde os bancos centrais aproveitam para aliviar restrições, e é um momento (actual) de garantia de depósitos. Dentro desta fase pode ainda acontecer uma situação de suspensão de pagamentos.

Nesta fase os bancos centrais questionaram-se sobre as instituições que salvariam ou as que deixariam cair. A FED decidiu deixar cair a Lehman Brothers depois de já ter salvo quatro outras instituições nos meses precedentes. Esta foi a maior falência da história e César das Neves acredita que hoje o banco central norte-americano deve estar arrependido.

A próxima fase é a da resolução da massa falida. Trata-se de aguentar bancos, de injectar capital, de criar instituições públicas para ajudar, a exemplo do que sucedeu na década de 90 com a crise dos “Savings and loans”. Ocorrerá nesta fase a venda das operações. “Quem mantém a cabeça de fora, arrisca a ficar muito rico”, afirma o professor.

Efeitos
Os efeitos reais desta crise na economia, ninguém os sabe avaliar, diz o economista. Nas últimas 124 crises houve, em algumas delas, resultados de pouco impacto mas em outras, houve custos da ordem dos 150% sobre o PIB anual. Calcula-se que no caso da Grande Depressão dos anos 30, nos EUA, o custo foi de 30% a 60% do PIB americano de 1929.

Aquilo que se verifica que é a economia evolui com as Autoridades atentas e “é de prever que não existam catástrofes.” Aquilo que se verifica actualmente é que a crise de Agosto de 2007 tornou-se global em Outubro daquele ano e hoje a Reino Unido está em recessão e a Alemanha já devia estar, ou seja, o epicentro da recessão acaba por estar longe dos EUA, onde tudo começou.

Sobre o futuro imediato, César das Neves considera que haverá uma subida do desemprego e haverá sinais claros de recessão em 2009, mas “ninguém prevê que seja uma crise muito forte e o nosso problema (português) foi o facto da crise não ter sido muito forte. A economia estabilizou quando precisa de “acordar”.

A recente injecção de fundos e as garantias anunciadas pelos governos europeus e americano são cruciais para sustentar os pobres porque são eles que têm depósitos na banca e são eles que mais sofrem com o desemprego.

Os subsídios à pobreza nada têm a ver com o apoio à banca, já que o dinheiro não tem de ser gasto e as garantias não vêm dos impostos. Na prática, se as pessoas acreditarem não será necessário pagar nada. Para o Estado pode ser um investimento, já que os activos com o Estado ficará na sua posse irão valer dinheiro no futuro, embora no pânico nada valha nada. O limite da injecção de fundos do Estado “é o risco da inflação, mas como o dinheiro desapareceu não há inflação”, e também, acrescenta, “não há nenhuma crise orçamental.”

Conclui o economista que será importante não se cair na tentação de criar um sistema novo. “Seria um erro, porque o sistema financeiro funciona bem e é das instituições mais regulamentadas que existem”. Aquilo que se impõe é o “bom senso”, conclui.

Artigo originalmente publicado no Jornal OJE de 27 de Outubro de 2008. Publicado com permissão.