2º Congresso Nacional ACEGE – Ética: Factor de Realização e Progresso

1955

Senhor Dr. João Alberto Pinto Basto

Bem-haja pelo Seu convite e sobretudo pela dedicação com que tem conseguido manter só viva a Associação Cristã de Empresários e Gestores num País em que longos séculos de paternalismo estadual afogaram o associativismo e criaram complexos culturais perante a empresa privada, e o secularismo e o laicismo da pós-modernidade têm dificuldade em aceitar a vivência religiosa fora do templo ou da sacristia.

Caríssimos amigos                                                 

1. Falar, neste local – Associação e Congresso de Cristãos ligados à empresa -, da Ética como factor de realização e progresso é falar da nossa ética cristã, dos reptos que a viragem para o novo século coloca à sua vivência em geral e na sociedade e na economia portuguesas, em particular, da convivência da ética cristã com outras éticas na comunidade que formamos, e da imprescindibilidade do primado da ética na nossa vida pessoal e na vida comunitária.

Tudo na estrita base da modesta reflexão de um cristão leigo, a um tempo participante e observador analítico, (com a brevidade que deve assistir às palavras introdutórias) ciente de que o essencial que aqui viemos receber começa e acaba na intervenção do nosso Pastor, Senhor Dom José Policarpo.

2. Ética cristã, primeiro.

Somos cristãos. E essa dimensão não é lateral na nossa vida, antes constitui a dimensão central, nuclear da nossa escolha como pessoas.

Para muitos de nós, a Fé chegou pela educação materna e paterna, pela família, pelo meio ambiente em que nascemos e iniciámos o nosso processo educativo. Foi uma Fé acrítica antes de chegar a ser uma Fé assumida. Fomos cristãos antes de o querermos ser.

Depois, a nossa escolha pôde exercer-se. Para uns mais cedo, para outros mais tarde. Linearmente ou com sobressaltos. Na solidão das grandes decisões ou em partilha, patente ou insinuada, com tantas e tantos outros companheiros de percurso.

Assim quisemos afirmar a nossa Fé, uma Fé monoteísta, num Deus uno e trino, Deus-Pai que nos oferece a eternidade; Deus-Filho que nos dá o testemunho da ressurreição e revela, na sua mensagem, o caminho para a vida eterna e cria a Igreja, depositária da Fé e guia na decifração, no tempo e no espaço, da mensagem revelada; Deus-Espírito Santo, cujo sopro, na História e para além dela, nos ilumina, apoia e incentiva na caminhada pessoal e comunitária.

Fé com uma dimensão vertical, na relação com Deus, directamente ou por interposta intercessão, de que a de Nossa Senhora constitui expressão suprema; e com uma dimensão horizontal, na fraternidade dos mais seres humanos, nossos próximos-próximos ou próximos-longínquos, e com tradução qualificada na comunhão dos santos.

Dimensão horizontal esta essencial ao percurso da Salvação, que não é uma abstracção da nossa inserção comunitária, antes a supõe e valoriza, tal como supõe e valoriza quer a fraternidade globalizante, quer a fraternidade intergeracional.

Somos irmãos solidários com os que nos são mais imediatamente vizinhos, no sangue, na ligação à terra, na cultura, na civilização, como o somos com aqueles que se encontram nos nossos antípodas geográficos, culturais, civilizacionais ou de linhagem.

Do mesmo passo, assumimos a responsabilidade de viver em função tanto das gerações com as quais privámos ou privamos como das muitas outras que nos antecederam e nos sucederão.

A nossa Fé é comum e é específica. É comum na essência dos contornos, da mensagem revelada, da partilha comunitária. É específica como específica é a identidade pessoal de cada um de nós, vivida de modos, diversos, em contextos diferentes, e variando a própria forma de vida no decurso da nossa existência. Assim como não somos e não queremos ser genética e espiritualmente clonados ou c1onáveis, também não concebemos duas vidas iguais na experiência da Fé.

Para uns, o percurso é mais de ascese, de oração com meditação e glorificação aparentemente solitária de Deus; para outros, ao lado da oração existe a acção de serviço aos outros, forma diversa de gloriar Deus.

Para uns, Deus não intervém pontualmente no curso da vida humana, antes apelando à liberdade e responsabilidade de cada qual; para outros, Deus actua providencialmente, em continuo e nos mais Ínfimos pormenores da relação com os outros humanos, quando não como todos os entes que formam a Natureza.

Para uns, a caminhada terrena é sobretudo uma Via Sacra, em direcção à eternidade; para outros, ela é mais o começo da construção da vida eterna, na partilha do estado de graça e em múltiplos pequenos grandes instantes de toque de eternidade.

Para todos os cristãos, porém, a Fé é libertadora e convida ao optimismo. O cristão é, por natureza, optimista, porque a sua Fé é uma graça, uma graça de eternidade, uma graça que comporta a revelação do trilho a seguir e o aconselhamento a ouvir na peregrinação para a vida eterna. E essa graça liberta-o do acessório, dá sentido ao contingente, sublima o penoso, o dilacerante, o aparentemente incompreensível.

Para todos os cristãos, por outro lado, a Fé impõe algumas poucas sujeições, muitos deveres de sofrer, de aceitar, inúmeros deveres de não fazer e, mais do que tudo, múltiplos deveres de fazer, para usarmos nomenclaturas do Direito e de outras disciplinas sociais.

Sujeitarmo-nos à nossa condição humana, no que ela tem de imperfeito ou não perene.

Aceitarmos o sacrifício, no que ele tem de purificador e de redentor. Abstermo-nos de agir – nessa compósita natureza de pensar, sentir, querer – contra o que nos aproxima de Deus, nomeadamente aquilo que passa pelos nossos próximos.

Devermos agir, para além do respeito do Decálogo ampliado e diversificado, ao serviço das Bem-Aventuranças, e das suas renovadas exigências actuais, no caminho para Deus através dos que são nossos irmãos de destino.

Para todos os cristãos, o optimismo da caminhada para a eternidade não pode nem deve, porém, omitir ou obnubilar o grau de exigência da Fé, que afirmam, a sua visceral radicalidade, feita de desafios drásticos, de que os Evangelhos são repertório eloquente. Dos imperativos das metas ao serviço dos mais explorados, oprimidos e marginalizados, aos percursos envolvendo sacrifícios de carácter pessoal, familiar e comunitário.

Dito de outro modo, para todos os cristãos a sua Fé representa um privilégio e, inevitável e marcadamente, uma responsabilidade acrescida.

Somos privilegiados porque a nossa Fé nos abre caminhos a que alguns outros só chegam por vias bem mais complexas, custosas ou acidentadas.

Mas, porque privilegiados, somos também muito mais responsáveis. A nossa Fé responsabiliza-nos reforçadamente. Quem mais recebe, mais deve dar. Sempre e amiúde quando as solicitações da nossa visão imediatista menos o fariam antever ou desejar.

Aqui chegados, sabemos que a nossa Fé implica uma Moral e uma Ética. Uma e outra decorrem do essencial da nossa crença, mas beneficiam da existência de uma mensagem revelada, que Cristo nos deixou, bem como dos ensinamentos dos seus discípulos e do magistério dos discípulos desses discípulos, numa longa e rica teoria e prática que atravessam dois mil anos.

A nossa Fé é personalista, porque o ser humano imago Dei, criado à imagem de Deus, transporta na sua dignidade todos os valores pessoais e comunitários a salvaguardsr na caminhada terrena.

Personalista porque promovendo – o que quer dizer mais do que respeitando – a dignidade de cada pessoa concreta, de carne e osso, e de alma irrepetível.

E neste acento específico e concreto vai toda a diferença relativamente aos meros apelos ou proclamações abstractas e genéricas, se desacompanhados de um nome, de uma identidade moral e física, e, nessa medida, passíveis de leituras e práticas transpersonalistas.

É, aliás, este traço pessoalíssimo da nossa Fé que explica que cada um de nós transporte consigo um ethos adensado, um fundo de valores e de princípios em que, àqueles que resultam da natureza própria do ser humano, ser imperfeito mas vocacionado para a busca da perfeição, se somam os que decorrem da Fé professada.

O ethos natural soma-se ao ethos cristão, de resto em larguíssima medida com ele coincidente no seu núcleo principal, quais círculos concêntricos, só que o do ethos cristão de maiores raio e diâmetro.

Este ethos corresponde a uma moral e a uma ética, sendo que, como ensinava Hans Küng, o ethos é a expressão pessoal e a ética (e diria eu também a moral) representam corpos de valores e princípios vocacionados à disciplina da nossa conduta ao serviço desse bem qualificado que é a construção da vida eterna.

Desta perspectiva, o ethos é a raiz pessoal da adesão moral e ética.

A Moral é o complexo de valores e princípios, independentemente da sua precipitação em situações concretas, no tempo e no espaço.

E a Ética o mesmo complexo enquadrado num certo tempo e em certos espaços.

Outros preferem chamar Ética à dimensão mais abstracta e Moral à sua projecção.

Seja como for, a nossa Fé dá acrescida densidade ao nosso ethos e prolonga-se numa Moral cristã e numa Ética cristã.

Moral e Etica cristãs, para os quais Deus é o centro e razão de ser da nossa vida e a dignidade da pessoa, das pessoas por Ele criadas, a preocupação constante da acção individual, familiar, cultural, económica, social e política.

Da dignidade das pessoas são indissociáveis os seus direitos e deveres fundamentais, a sua diferença existencial, a sua liberdade e responsabilidade, e ainda o imperativo de justiça social comutativa e redistributiva, que junta aos direitos de liberdade os direitos de igualdade e os direitos de qualidade da vida.

A esta luz se entende a inaceitabilidade de soluções ou modelos económicos, sociais e políticos totalitários e autoritários, bem como colectivizadores, vedando ou esvaziando direitos substantivos e adjectivos essenciais à vida, à identidade genética, à integridade, à liberdade pessoal, de pensamento, de religião, de organização e acção cívica, e também de propriedade e de iniciativa económica e social.

Mas, do mesmo modo, esses direitos e liberdades não podem deixar de ter presentes os deveres fundamentais, a presença dos direitos alheios e as exigências de correcção das iniquidades existentes, nomeadamente através de outros direitos, os económicos, sociais e culturais.

Isto sem nunca esquecer que as liberdades económicas das pessoas e grupos obedecem a uma razão de ser personalista, que implica que os naturais interesses pessoais ou institucionais se não sobreponham à visão cristã acerca dos bens, sua origem, gestão e destino.

Não somos, senhores absolutos da nossa própria vida nem dos nossos bens. Somos gestores de talentos de origem divina e devemos fazê-los frutificar, sem nunca cedermos à tentação de os transformarmos em em princípio e fim da nossa passagem terrena.

A Moral e a Ética cristãs atravessam todas as vertentes da vida humana.

Não se confinam às práticas religiosas, culturais e outras. Não se circunscrevem aos momentos e aos lugares de culto. Não se aplicam apenas à vida íntima, à vida privada, à vida familiar. Abarcam a vida laboral ou profissional, a vida local, a vida participativa social e a vida cívica e política.

Neste Forum, ganha óbvia pertinência a problemática do papel da empresa privada, dos empresários e dos gestores das empresas, em conformidade com a Ética cristã, nomeadamente na sociedade portuguesa.

O personalismo cristão reconhece e incentiva a função das expressões da liberdade pessoal, e das instituições lucrativas ou empresariais e não lucrativas, bem como das estruturas ou grupos intermédios dentro e para além da comunidade estadual.

A empresa é lugar privilegiado de criação e distribuição de bens materiais e de bens espirituais, na conjugação diferenciada e por vezes conflituante de empresários, trabalhadores e gestores.

Lugar de liberdade, de responsabilidade, de honestidade, de verdade, de transparência de propósitos e de condutas, no seu seio e nas relações com as pessoas e as comunidades envolvidas.

Lugar de gestão de bens que não são um fim em si mesmo, mas um instrumento de serviço das pessoas. E, nesta acepção, à sua maneira, tão gestores de bens são os administradores como os empresários e os trabalhadores.

Em suma, para os cristãos, a presença constante da ética na empresa não é só uma questão de eficácia, de eficiência, de rentabilidade, pela via da rectidão dos procedimentos, da paz social, da credibilidade das instituições e dos seus representantes.

Trata-se de uma das inúmeras projecções da sua Fé, que se impõe por si. Pela natureza do ser humano, da sua viagem terrena e dos bens de que usufrui.

Mas, naturalmente, importa à Ética cristã que aqueles que vivem na empresa e com ela se relacionam conheçam a realização como pessoas e a empresa contribua para maior riqueza comunitária e sua melhor distribuição.

Eis, pois, como o ideário cristão e a sua efectivação permanente se unem para aconselhar que os cristãos sejam os primeiros, porque necessariamente os mais responsabilizados, a promover a afirmação e a concretização de valores e de princípios éticos também na empresa.

3. Ética cristã na empresa, que é uma das múltiplas áreas de vivência do cristão, com as suas pautas de conduta, escritas e não escritas.

E que desafios, alguns deles de tomo, se colocam a essa Ética neste começar de novo século e milénio, em geral e na nossa sociedade!

Enumerá-los a todos seria fastidioso. Seleccionar alguns dos mais importantes é essencial.

Antes do mais, os desafios comuns à Cristandade, nomeadamente no Ocidente. Desafkos como os da secularização da vida e laicização da sociedade e das comunidades políticas, a exigirem humildade, abertura e convivência plural à Igreja e aos cristãos; mas também determinação na denúncia de secularismos e laicismos anti-éticos e antidemocráticos, sempre que se confunda poder das religiões e dos crentes, enquanto tais, no espaço público.

Desafios como os da globalização e da aceleração do tempo cívico, social e comunicacional, bem ajustados a uma Fé que foi sempre universal e político não confessional com poder político sem ética, sem valores, ou se confunda separação entre poder político e religião com a interdição do papel transtemporal.

Ou como os dos contrastes chocantes entre mundos, nas desigualdades, nas explorações, nas guerras, nos terrorismos, nas exclusões longínquas e próximas, preocupações por natureza da mensagem cristã e da sua prática milenar.

Ou como os ateísmos militantes, os existencialismos nihilistas, e, mais perto no tempo, os agnosticismos, os relativismos, os amoralismos hedonistas e consumistas ou fatalistas e cepticistas, a convidarem os cristãos à pedagogia vivida da Fé como testemunho optimista do primado do espírito.

Ou como, em contraponto, os sintomas do regresso ao religioso e sobretudo de um acreditar sem pertencer, isto é de um crer individual sem pertença a uma instituição ou igreja, a despertar a vocação missionária dos cristãos.

Ou a cultura da morte, tão visível em traços do comportamento da velha Europa, a postular a afirmação da vida, de todas as vidas, a começar naquelas que têm direito a existir.

Ou a cultura do mediaticamente exemplar, da ilusão do ser humano convertido em Deus e feitor de Deuses, da marginalização da doença, do sofrimento, da imperfeição, a solicitar a denúncia dessa mitificação do secundário e dessa incapacidade de aceitar que o apelo de perfeição dos humanos reside bem noutro sítio – no seu espírito, não na sua matéria.

Mas, aos desafios globais se juntam os essencialmente económicos, sociais e políticos.

Como o da transição, em muitos casos, do Estado Social Providência para o Estado Pós-Social, ou preventor, garante, regulador e só interventor nas áreas e segmentos de correcção de as simetrias e salvaguarda de base de existência condigna de pessoas e famílias; ou o da internacionalização da vida económica, seus fluxos, suas expressões empresariais, mas, por igual, suas virtualidades e crises, a ritmo acelerado; ou o da crescente interpenetração entre educação e cultura e economia, ou entre comunicação e economia; ou o da transversalidade impressionante das relações entre economia e expressões da inserção social.

Tudo a colocar aos cristãos um repto de atenção e participação redobradas num espaço mais vasto e onde não há tempos mortos ou omissões irrelevantes.

Tal como quanto a outros desafios ainda: a multiplicação dos poderes políticos supra e infra-estaduais; a reconversão das Administrações Públicas, do jus imperii puro à visão do administrado como utente e mesmo como accionista, e às parcerias com as entidades privadas, lucrativas e não lucrativas, sociais e cooperativas; a própria empresarialização do sector público; a sofisticação da composição do capital, das instâncias de gestão, das estruturas de trabalho e dos organismos de regulação empresarial; a crise e o reajuste nas clássicas instituições representativas dos interesses económicos e sociais; a natureza referendária e inorgânica de novas vertentes participativas nos Estados, acima e dentro deles, com relevo para as organizações não governamentais; a procura constante de fórmulas para ajustar mecanismos representativos e seus intérpretes às democracias mediáticas, em certos mundos, e para reequacionar ditaduras e afins, nos outros e maioritários mundos.

De novo, desafios inúmeros, vigorosos e prementes a proibirem a passividade, a apatia, o isolamento, a auto-exclusão dos cristãos, de um empenhamento que é também um modo qualificado de caminhada para a eternidade.

A Ética cristã vê-se assim confrontada com questões, umas novas no conteúdo, outras na forma, todas elas indissociáveis da dignidade da pessoa, da justiça, da paz, da solidariedade, e, na medida em que tal serve esses valores, da eficiência e da eficácia na escolha dos meios e dos instrumentos de actuação, no tempo e no espaço.

Questões, todas elas, inseparáveis da acção evangelizadora da Igreja, povo de Deus, na formulação conciliar: evangelização de muitos, a quem a mensagem revelada chega por uma primeira vez; catequese daqueles que se inserem numa linhagem familiar ou comunitária de vivência cristã; e nova evangelização, particularmente actual em terras europeias, para sectores sociais que, tradicionalmente sensíveis aos ensinamentos cristãos, se afastaram, em regras e práticas, desse convívio habitual.

Em Portugal, a umbrela quase milenar da Igreja, na fundação e aos longo da História da Nação, explica presenças, influências, símbolos, interrelações constantes na vida de praticamente todos, até daqueles que se não reconhecem nesse universo cultural e vivencial.

E, no entanto, a secularização e a laicização; o secularismo e o laicismo seus deturpadores, a urbanizaçao católica e, por vezes, desenraizadora, a crise e morte de muito mundo rural; as migrações, emigrações e imigrações sucessivas; a guerra e a descolonização e suas sequelas; o rápido processo de integração europeia; a chegada simultânea à liberdade e à democracia mas, num primeiro tempo, também aos sobressaltos revolucionários a colectivismos e a ensaios utopistas de participação inorgânica auto-gestionária; o abalo social – no laboral e no empresarial – com o fim de um modelo autárcico e com ligaçoes coloniais; a nacionalização dos principais grupos económicos e a reprivatização, vinte anos volvidos, em condições de acentuada descapitalização; os tropismos de publicização dos sístemas sociais, em obediência a louváveis exigências de justiça, mas, aqui e ali, com sacrifícios das pessoas e grupos; o peso do novo panorama na Comunicação social; a clivagem entre dois Portugais – o da Área Metropolitana de Lisboa e o outro, apesar de tudo mais semelhante

em si mesmo, do que idêntico ao da Grande Lisboa; a integração europeia e a internacionalização, todas estas mudanças, em menos de três décadas, somaram-se às demais antes recenseadas e provocaram desequilíbrios, disfunções, perturbações, que atravessam o nosso quotidiano, mesmo quando um secular pragmatismo os ilude ou acomoda. E se é verdade que o saldo g obal da reacção imediata à descolonização, democratização, reeuropeização e criação de economia social de mercado é inequivocamente notável, não o é menos que muitas perguntas esperam respostas, muitas angústias exigem horizontes, muitas provações requerem soluções.

Para os cristãos, o tempo novo é um tempo de acção.

Com a dificuldade de alguns, pela mudança havida quanto a facetas do estatuto factual da Igreja perante o Estado e sectores da sociedade, e sobretudo pela habituação a um contexto em que a indiscutibilidade, ao menos aparente, de certos valores, princípios e condutas convidavam a um protagonismo discreto, não demasiado preocupado, confiante na certeza das rotinas consensuais.

Esse tempo já foi. Os valores, os princípios e as condutas tidos por pacíficos são hoje questionados, abertamente, por sectores aguerridos, ou deixados cair, imperceptivelmente, por muitos outros, mais numerosos.

O Portugal urbano, em especial, o Portugal lisboeta metropolitano, os grandes órgãos audiovisuais, alguma cultura cívica emergente, o mundo do trabalho, as escolas, os sistemas de saúde e de segurança social, o desporto e o lazer, os novos apelos ecológicos-ambientalistas, esses universos decisivos que são o dos idosos, dos imigrantes e dos jovens mudaram tanto e tão vertiginosamente que a mensagem cristã se atrasou a ajustar-se nos protagonistas, na forma, nos meios – nos processos de a eles chegar -, e é imperioso atalhar caminho, acordar passividades, mobilizar solipsismos, se queremos ser aquilo que, por vocação, é atributo do cristão – ser evangelizador.

Neste acordar para os novos tempos, ganha redobrada acuidade a Ética cristã na empresa, ou seja o contributo dos cristãos para que a empresa seja um lugar geométrico de valores e princípios da Ética cristã.

Como comunidade intermédia. Como ponto de encontro, respeito e realização das pessoas e da sua dignidade. Como local de santificação pelo trabalho individual e colectivo. Como exemplo de construção do bem comum, entendido este, não como arquétipo transpersonalista, mas como projecção social do personalismo concretizado.

Esta Associação, este II Congresso e este Código de Ética dos Empresários e Gestores representam sinais do empenhamento dos cristãos ao serviço da Ética cristã nas empresas.

4. Mas, será que o Código de Ética aqui em apreciação pode almejar ser um denominador comum de trabalhadores, empresários e gestores de empresas cristãos e não cristãos, das mais diversas confissões religiosas ou a elas indiferentes e mesmo opostos? Ou estará condenado a constituir compromisso exclusivo daqueles que o conceberam e pretendem difundir e, sobretudo aplicar?

Perguntando de outro modo, a Ética cristã é realidade muito diversa ou dificilmente compaginável com a Ética social, em geral, designadamente no mundo da empresa e na sociedade portuguesa?

A resposta a estas questões, relaciona-se com a convivência/plural entre a Ética cristã e outras Éticas de raiz religiosa ou dela desprovidas.

Pelo facto de ser pessoa, cada ser humano é portador de um ethos natural, que comporta um núcleo fundamental de valores, inseparáveis da dignidade pessoal, e que são comuns a todos, independentemente de diversidades de sexo, de raça, de cultura, de estatuto social, de orientação religiosa, filosófica, política ou pessoal.

Esse ethos compreende valores que atravessam toda a vida social, e, portanto, também a empresa e a vida empresarial.

Dignidade da pessoa, sua realização em sentido amplo, liberdade e responsabilidade, justiça e solidariedade, na respectiva encamação empresarial) unem todos os membros de uma comunidade, não dividem, porque natural é a identidade de ethos entre eles.

Valendo isto para um conjunto básico de valores e princípios, vale para o núcleo mínimo denominador comum de Moral e de Ética sociais correspondentes àquele ethos.

Mas valerá, de igual modo, para tudo quanto vá do mínimo ao máximo denominador comum?

Neste particular, cada sociedade, em teoria, é um caso, e o que nos importa é, obviamente, a sociedade portuguesa.

Ora, nesta, a Ética cristã, não sendo única, nem querendo chamar a si pretensões exclusivistas, incompatíveis com o pluralismo social e cívico, conhece, no entanto, uma natural projecção secular, e consequente enraizamento social, que faz com que muitos dos valores e princípios que acolhe sejam idênticos àqueles que recebem, ao menos em tese, a adesão maioritária dos portugueses e das suas instituições económicas e sociais.

O convívio democrático entre éticas impede monopólios, mas não pode ignorar sedimentações históricas e sociológicas.

Pelo que, para além do núcleo ‘Básico de ethos natural, mais concretizações de valores e princípios se lhe somam, para dar expressão ao máximo denominador comum. E o que se diz da sociedade portuguesa se pode dizer das européias em geral. É o insuspeito Jurgen Habernau_a reconhecê-lo: “Penso que, enquanto europeus, não podemos compreender seriamente conceitos como imoralidade, homestidade, pessoa e individualidade, liberdade e emancipação, sem assinalar a substância do pensamento histórico-salvifico de origem judaico-cristã”.

Acresce que, de novo na sociedade portuguesa, é manifesta a convergência axiológica essencial entre a comunidade católica e outras comunidade cristãs (incluindo as ortodoxas, correspondentes a imigrações recentes) e ainda confluências relevantes entre a aquela e comunidades de crescente relevo na Europa como as islâmicas.

E, antes e acima das vicissitudes de cada sociedade, a Moral e a Ética cristãs, nelas próprias, têm uma essencial identificação com a Moral e a Ética naturais, para uns parte de um normativo Direito Natural, para outros inspiração de um valorativo Direito Natural flexível na sua concretização temporal e espacial.

Em suma, razões de ethos natural, de natureza da Ética cristã, e de processo histórico-cultural na sociedade portuguesa explicam que sejam fáceis convergências de afirmação de valores e de princípios, que podem e devem chegar à vida da empresa.

Nada que impeça iniciativas de diálogo e cotejo de posições que venham a ser promovidas por esta Associação e pelos seus associados na sequência da adopção do presente Código de Ética.

Pelo contrário. Afiguram-se-me imprescindíveis todas as formas de debate com parceiros económicos e sociais – patronais e laborais -, com representantes de confissões religiosas, com outras instituições da sociedade civil ligadas à empresa, com a Comunicação Social, com o próprio poder político, tendo em vista alcançar para o novo Código uma adesão social reforçada, ao menos no plano da sua aceitação de princípio.

5. Se assim for. Se, como todos desejamos, for possível generalizar, entre nós, aquilo que já é noutros países e em certas entidades transnacionais a experiência de Código de Ética, o passo seguinte, mas verdadeiramente decisivo, é o da sua efectiva aplicação.

Uma coisa é proclamar valores, outra é respeitá-los, aplicá-los, potenciá-los no dia-a-dia da vida social.

E, neste outro plano, a nossa tradição de cultura cívica é, tantas vezes,descoroçoante, e a prática actual, a diversos títulos, desanimadora.

Ao clássico acomodamento laxista adicionámos, em particular a partir do Século XIX, um culto da suave fraude aos princípios e às regras, uma desconfiança perante as instituições, uma adesão amoral às vantagens do oportunismo imediatista, do individualismo alérgico a preocupações sociais, do salve-se quem puder pouco solidário ou anti-solidário, da aceitação de entorses à coluna vertebral a pretexto de acomodamentos pragmáticos.

Tudo, no fundo, a significar o sacrifício da Ética e do seu primado.

É precisamente esse primado que importa reafirmar.

Sem ele, a vida humana é menos humana. Sem ele, a convivência social é menos convivência e mais exclusão. Sem ele, deixa de haver metas a atingir, há apenas instantes sucessivos e instáveis a experimentar, instantes mais depressa dolorosos ou vazios do que motivantes e realizadores. Sem ele, vale tudo, o que quer dizer que vale sobretudo o pior, o mais injusto e iníquo. Sem ele, a pretensa eficácia do momento não é sustentável e a injustiça decorrente acrescida. Sem ele, a frustração surge e a busca de paliativos ilusórios aumenta, com posteriores e multiplicadas frustrações,

O primado da Ética, que quer dizer o primado nas palavras, mas, sobretudo, o primado nos factos, é urgente, é premente, é inadiável.

Para todos e sempre. Também para a empresa e aqueles que nela gerem bens ao serviço de valores supremos como são os da pessoa e da sua dignidade.

Por isso aqui estamos. Cristãos fiéis a uma Fé, mulheres e homens leais a uma natureza e a um destino.

Muito obrigado

Marcelo Rebelo de Sousa

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