Vale a Pena!

1757

Para quem anda por aí, a tratar da sua pequena/média empresa, como são quase todas as que existem em Portugal, a cuidar dos filhos, porque neste Portugal deserto e infértil ainda há quem os vai tendo, e dando uma perninha aqui ou ali a favor de uma causa qualquer altruísta, o desencanto e a desilusão vão-se instalando, devagar, devagarinho, impondo a tristeza e a vontade de desistir.

São retratos pessoais, experiências que acontecem a todos, e todos os dias. De uma vez é a espera, do tamanho de uma manhã, na segurança social por um erro que a própria administração causou. Pedem-se desculpas, explica-se que dos sete funcionários três não estão, vá-se lá saber porquê, que a hora do almoço já nunca acontece, que o computador não funciona, que o sistema vai abaixo, que a colega do serviço A é que sabe do assunto, mas que hoje, foi só hoje, não pode atender. No guichet, à porta do serviço, sucedem-se as reclamações, porque se cobrou indevidamente, porque as guias estão trocadas, porque ficaram de mandar uma carta que nunca chegou, porque a conta foi penhorada mas tudo está pago, porque isto e aquilo. Não há cadeiras para todos, o ar condicionado não existe, e a espera eterniza-se. Valem os telemóveis, esse negócio do século ainda protegido de alguns, para ir despachando qualquer coisa, saber novidades e perguntar pelo filho doente.

À tarde, reunião na câmara. Passeia-se pelos corredores e não se acredita. São às toneladas os dossiers, as folhas desgarradas, os armários a deitar por fora, há papéis e mais papéis. Falando com os botões, dá vontade de perguntar se há alguma alma que saiba onde está o quê. Começa a reunião, os funcionários são diligentes, querem ajudar, mas sempre vão dizendo que o problema, o tal que me leva ali, já vem de trás, que agora a coisa está complicada, que a Lei não ajuda e que estão de pés e mãos atados. Percebem que a Câmara deveria ter percebido o problema a tempo, mas agora?

A talho de foice sempre deixam escapar que agora está tudo parado. A Judiciária anda por lá, quer ver tudo e um par de botas o que lhes toma o tempo que não têm, que não há chefes, nem directores, nem ninguém que se arrisque a propor grande coisa. “Olhe” dizem-me como quem dá uma boa notícia, “isto com jeitinho daqui a uns noves meses está resolvido”. E sempre se vai sabendo, sim porque nesta terra tudo se sabe, que há vereadores com mais de uma dezena de assessores, que ganham o dia quando percebem que há indícios de qualquer coisa que cheira a negócio escuro; o ideal para ficar de bem com a imprensa.

Regresso a casa, nos subúrbios, naquele exercício diário de paciência que faria só corar de inveja. E na conversa com os filhos fica-se a saber que a professora de filosofia teima em não aparecer, que se prepara uma greve, estimulada pelos professores, a contestar as aulas de apoio, ou que se prepara a enésima versão da gramática portuguesa, ou que o amigo foi assaltado mas a polícia diz que não pode fazer nada porque o ladrão, conhecido e reconhecido é menor e, coitado, vem de uma família desestruturada, como agora se diz. Proíbe-se a telenovela aos mais novos, mas a mais velha, que já conquistou direitos, e assiste. E, olhando de relance, percebe-se que o enésimo capítulo é sobre uma jovem, de 15 anos, que “tranzou”, ao que a médica responde: “Oba, que bom, mas você tem de estar preparada. Toma, leva umas camisinhas para a próxima estar relaxada.”

À noite são os telefonemas. É preciso arranjar dinheiro para aqueles que ainda vão fazendo alguma coisa pelos outros. Tarefa difícil e que regra geral acaba sempre nos mesmos, os que ainda, e sempre, dão. Muitos destes donativos não contam para o IRS, e a segurança social está doidinha para cortar nos magros subsídios que ainda dispensa, argumentando com a capacidade da organização em sacar dinheiro à sociedade civil, como chama aos generosos de serviço.

Mas é no fim do dia, quando se percebe que estamos aqui, mas não somos daqui. Que afinal de contas o melhor está para vir, e que antes de nós, e depois de nós, muitos houve e muitos virão que continuarão a dizer, a escrever, e a berrar se for preciso, que somos, apesar de tudo, felizes há dois mil anos.

Só por isso, e só por causa disso.

Pedro Vassalo

https://acege.pt/Lists/docLibraryT/Attachments/44/PedroVassalo.jpg