O chamamento e a missão

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Neste tempo de tanta incerteza e em que tudo parece fracassar, e em que parece não haver saída, dá vontade de gritar bem alto a frase de João Paulo II nas Jornadas Mundiais da Juventude de Toronto de 2002: “Nós não somos a soma das nossas dificuldades e misérias, mas a soma do Amor de Deus por nós!
POR JOÃO CASTRO PERNAS

“Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”
(Santo Agostinho)

“Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa. O que não é eterno é nada.”
(São João Bosco)

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João Luiz-Gomes de
Castro Pernas
(Associado da ACEGE)
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APRESENTAÇÃO
Quando fui convidado pelo nosso Secretário-geral, Jorge Líbano Monteiro, a escrever um artigo sobre a minha eminente partida em Missão para o Sul de Espanha, tinha muitas dúvidas sobre o que poderia escrever relacionando esta partida com a ACEGE. Porém, ao pensar nesta Missão em concreto, no tema que tem dominado esta associação nos últimos tempos- “Amor ao próximo como critério de gestão”, e o facto de o Papa ter convocado para este ano o Ano da Fé, várias ideias começaram a surgir. O problema invertia-se, como pôr em palavras tanto que há para dizer?

É importante apresentar-me. O meu nome é João Luiz-Gomes de Castro Pernas, terceiro de doze irmãos vivos (há mais quatro no Céu) e tenho 29 anos. Estou ligado à Igreja desde que nasci, dado que os meus Pais pertencem a uma Comunidade do Caminho Neocatecumenal e, também eu, por volta dos 14 anos, entrei numa Comunidade em Caxias. Ao longo dos anos tive a graça de conhecer várias outras realidades da Igreja: preparei-me para o Crisma no Liceu com o CL (Comunhão e Libertação), participei na primeira Missão Universitária organizada por Schoenstatt (em 2003), conheço várias pessoas ligadas ao Opus Dei, li vários textos sobre Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier. Além disso, durante os últimos dois anos e meio, estive ligado a um dos grupos “Cristo na Empresa” para os mais novos.

Em 2006 terminei o curso de Gestão na Universidade Nova de Lisboa, logo a seguir comecei a trabalhar num Banco de Investimentos, na altura das “vacas gordas”, e várias outras oportunidades iam aparecendo. Tinha um namoro de muito tempo, tinha uma família grande e em contínuo crescimento pelo nascimento de sobrinhos. No fundo, tudo parecia estar preparado para que os meus planos de vida se fossem concretizando.

CHAMAMENTO
Permitiu Deus que a minha vida mudasse muito. A tão badalada crise apareceu, as oportunidades foram diminuindo, o Banco também teve de enfrentar vários problemas, e, anos mais tarde, o namoro terminou. Lembro-me que nas entrevistas de trabalho, sempre que faziam a famosa pergunta: “Como se vê daqui a cinco anos?”, a primeira coisa que eu fazia era pensar que a pergunta era irritante, depois, com a típica cara sorridente e simpática que um entrevistado deve fazer, lá respondia: “Olhe, em primeiro lugar vejo-me casado. Profissionalmente, vejo-me (…)” (esta última parte dependia do tipo de empresa a que me estava a candidatar).

Ora, com todas estas mudanças, vi que na minha vida estava quase tudo fora dos meus planos. Isso trouxe-me uma grande inquietação, algumas alturas de revolta, não o escondo, mas ao mesmo tempo via claramente que Deus estava a trabalhar em mim, que queria falar comigo nesses acontecimentos, pois o lugar onde Ele nos fala é na nossa história e é aí que temos de responder. Apesar da ligação à Igreja descrita atrás aparentar uma fé madura, a verdade é que muitos destes anos tinham sido vividos numa grande hipocrisia. Muitos dos que me conhecem podem testemunhar que as minhas obras pouco ou nada tinham que ver com a educação orientada pelos ensinamentos da Santa Madre Igreja que recebi desde que nasci, e que estava centrado totalmente no meu eu e em enchê-lo com muitas das coisas que o mundo tinha para dar.

“O que queres Tu de mim?” perguntava muitas vezes. Isto levou-me, aos poucos, a entrar numa maior intimidade com Deus. Aproximei-me mais da Igreja (através dos Sacramentos, da Comunidade e da oração, muitas vezes pelo privilégio de ter a Capela da Universidade Católica muito perto do sítio onde trabalhava e de estar sempre aberta quando precisava) e da minha Família. Num dia mais difícil, a minha Mãe, ao aperceber-se disso, disse-me para abrir a Bíblia num Evangelho ao calhas. Saiu o chamamento de Mateus: “Segue-me.” (Lc 5, 27-28)

Passado algum tempo ofereci-me para a Missão. A partir daí fui acompanhado para ver se estava realmente a ser chamado por Deus para isso e para que tipo de Missão. Em Junho deste ano, num momento inesperado, durante uma Peregrinação a Lourdes, foi-me dito que estava convidado para ir a um encontro de itinerantes em Madrid na semana seguinte. Eu disse logo que não podia, porque não tinha férias marcadas e, além disso, tinha um casamento onde estava responsável pelo coro. Disse isto, mas pensava que tinha de ir senão nunca saberia o que poderia acontecer se tivesse ido, e porque continuava a lembrar-me da palavra: “Segue-me”.

Nessa Peregrinação, para além de termos visitado o lugar da Aparição de Nossa Senhora, fomos a um Mosteiro ali perto visitar uma monja de clausura que pertence à nossa Comunidade. A Margarida (assim se chamava a monja antes de entrar no convento) ofereceu a cada um pequeno papel com uma frase de um Evangelho, com umas letras muito bem desenhadas. Também aqui o papel foi tirado à sorte. Calhou-me a frase “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5) dita por Nossa Senhora nas Bodas de Caná, um episódio da vida de Cristo que muito me tem acompanhado estes últimos anos. Soube imediatamente o que tinha de fazer. As férias no trabalho foram dadas sem qualquer dificuldade e o coro teria de se desenrascar sem mim.

No encontro de Madrid estava com algum medo da mudança radical que aquilo traria à minha vida. Pouco antes de saber se ia ser enviado para algum lado (havia a possibilidade de me mandarem para casa) voltei a ler um Evangelho ao calhas: «Então, disse Jesus aos Doze: “Não quereis também vós partir?” Simão Pedro respondeu-Lhe: “Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que és o Santo de Deus”». (Jo 6, 67-69). Lembrei-me novamente do chamamento de Mateus e das palavras de Nossa Senhora nas Bodas de Caná. Lembrava-me também de um Cântico que diz que Maria ensinou-nos a obedecer a Cristo e a fazer tudo o que Ele nos disser para que a nossa água seja transformada em vinho novo, ou seja, que a água, sinal de falta de alegria na nossa vida, possa ser transformada em vinho, sinal da Alegria do Céu, da Vida Eterna.

MISSÃO
Fui um dos últimos a ser chamado. Quando o Kiko Arguëllo, iniciador do Caminho Neocatecumenal, me chamou, tirei um dos papéis que ele tinha nas mãos e abri-o. Lá estava escrito o lugar de uma das equipas onde precisavam de um itinerante: Sevilha. “¿Aceptas?” – perguntou-me com um olhar profundo que não esqueço. Respondi com uma única palavra: “Acepto”.

Tenho sido muito apoiado neste tempo, mas sei que muitos pensam que estou louco, “que me fizeram a cabeça”, como cheguei a ouvir uma vez. Quem é que tendo um trabalho estável, com contrato a termo incerto, numa altura tão complicada, com esta idade, larga tudo para ir nem sabe bem para quê? De facto, parece não fazer sentido, e, a juntar a tudo isso, curiosamente, fui chamado para mais entrevistas de trabalho desde que fui enviado do que nos últimos três anos, o que ainda torna as coisas mais difíceis de entender para quem está de fora. Muitas vezes, antes de vir, perguntavam-me o que vinha eu fazer? Eu respondia sempre de uma maneira um pouco vaga, mas ouvi uma vez alguém fazer a mesma pergunta ao meu Pai, e ouvi-o responder simplesmente: “Vai à procura do Amor de Deus”.

O que vim fazer foi a resposta a um chamamento de Deus, e começar a perceber que só Deus basta, que não há amor de pessoa alguma nem qualquer outra coisa que esteja acima deste Deus que é Amor, experimentá-lo realmente na minha vida e dar sinais disso e transmiti-lo àqueles que me forem postos no caminho. Tenho a consciência que agora estou num candelabro, onde tudo o que fizer é mais notado. Por vezes tenho medo de me deixar cair e que isso possa escandalizar outros, mas tenho esperança que Deus me vai ajudar a resistir às muitas tentações que irão aparecer. Tenho experimentado como Deus nunca se escandaliza de mim, pelo contrário, tem-me recebido sempre como um filho pródigo que tantas vezes d’Ele se afasta.

Não tenhamos dúvidas de que a crise actual que vivemos tem origem numa crise de fé, de o mundo se ter afastado cada vez mais de Deus, como o Papa tem dito tantas vezes, e ainda antes de ser Papa lembrava: “quando nos afastamos de Deus, avançam os demónios”. Neste tempo de tanta incerteza e em que tudo parece fracassar, e em que parece não haver saída dá vontade de gritar bem alto a frase de João Paulo II nas Jornadas Mundiais da Juventude de Toronto de 2002: “Nós não somos a soma das nossas dificuldades e misérias, mas a soma do Amor de Deus por nós!”. São tantas as pessoas que trabalham e vivem ao nosso lado que precisam e gostavam de ouvir isto. Lia há uns dias um livro que dizia «A criança que Isabel trazia no seio estremeceu de alegria à aproximação de Maria que, trazia, também, invisivelmente, Jesus: “O que é de Deus” num ser, estremece ao sentir “o que é de Deus” noutro ser». É este estremecimento que sou chamado a provocar naqueles com quem me cruzo, porque todos, crentes ou não crentes, têm dentro de si uma parte de Deus.

Outra das perguntas que mais tenho ouvido desde Junho é: “Quanto tempo ficas por Espanha?”. O que tenho respondido é que vou ficar o tempo que Deus quiser e que espero ter a disponibilidade de escutar primeiro e depois obedecer ao que Deus me for dizendo em cada dia, quer isso signifique ficar um ano, dois, alguns meses ou a vida toda. No fundo, deixar de fazer planos e deixar que Deus faça a sua história de Amor comigo e que eu não Lhe ponha entraves. Hoje estou disposto a estar em Missão e é apenas este hoje que tenho, é importante saber viver o dia-a-dia. C.S. Lewis escreve sobre isto de uma forma brilhante: “He [God] therefore, I believe, wants them to attend chiefly to two things, to eternity itself, and to that point of time which they call the Present. For the Present is the point at which time touches eternity”. Isto faz-me lembrar uma conversa que tive quando me ofereci para a Missão. Perguntaram-me “Estás consciente que a tua disponibilidade implica o celibato?”, ao que eu perguntei “Para sempre?”. Responderam-me com um sorriso: “Bem, para Deus o ‘para sempre’ tem um significado diferente do que tem para os homens”.

Espero que este Ano da Fé seja um novo começo na minha vida, o de uma vida em que possa dar-me aos outros, porque de facto toda a vocação deve ser doação total aos outros, como tão bem explica Santa Teresinha do Menino Jesus: “Encontrei finalmente a minha vocação. A minha vocação é o amor”. De facto, não há nada mais importante que amar, como dizia João Paulo II: “O amor não é algo que possa ser ensinado, mas é a coisa mais importante que deve ser aprendida”, porque “tudo o que se faz com amor adquire beleza e grandeza” (São José Maria Escrivá).

Tudo isto me transporta para casa, quando, desde pequeno, entre outras orações, rezava com os meus Pais e irmãos de manhã e antes de deitar: “Escuta Israel (escuta Pai, Mãe, Pedro, David, João, Maria, Tomás, Madalena, Rosarinho, Francisco, António, Simão, Constança e Zé) o Senhor nosso Deus é o único Deus. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua mente e com todas as tuas forças, e ao próximo como a ti mesmo. Faz isto e serás feliz.”

Dizia o Papa na oração do Angelus do passado dia 4 de Novembro: “De Deus aprendemos a querer sempre e somente o bem e nunca o mal. Aprendemos a olhar o outro não somente com os nossos olhos, mas com os olhos de Deus, que é o olhar de Jesus Cristo. Um olhar que vem do coração e não permanece na superfície, vai além das aparências e consegue captar os anseios profundos do outro: de ser escutado, de uma atenção gratuita; numa palavra: de amor. Mas verifica-se também o percurso inverso: que abrindo-me ao outro assim como ele é, indo ao seu encontro, tornando-me disponível, eu abro-me também para conhecer a Deus, para sentir que Ele existe e é bom.

CONCLUSÃO
Como disse na apresentação, conheço várias realidades dentro da Igreja, e com isso vejo a enorme diversidade de carismas existentes, e constato que muitos dão a vida para que o Amor de Deus chegue às pessoas que tanto precisam. Afinal, “a Igreja foi feita para Evangelizar” como lembrava o Papa Bento XVI na Eucarístia de abertura do recente Sínodo dos Bispos.

Às vezes sou enganado pelo demónio e penso que não estou aqui a fazer nada, que tudo isto é em vão, mas começo a experimentar, aos poucos, que de facto estou a caminhar com Cristo e isso é o mais importante que posso fazer na minha vida. É uma caminhada em que por vezes há silêncios, como normalmente acontece nas caminhadas com homens. Nessas alturas, no meio da escuridão que esses silêncios trazem, consola-me saber que tenho sempre uma Mulher a quem posso recorrer, Maria, a Mãe do Céu, que escuta os meus apelos e consegue mais facilmente chegar ao coração do seu Filho e ajuda-me assim a iluminar este caminho e a ultrapassar todos os obstáculos que vão aparecendo.

Como me ensinava o meu Pai (que há muitos anos atrás também foi itinerante, tal como a minha Mãe), quando as dúvidas aparecem, perguntamos: “Que estou eu aqui a fazer?”. E completava: “Esse é o grande mistério do Amor que Deus a cada dia te irá revelar, não de uma vez, mas aos poucos e principalmente nas pequenas coisas da vida.”

Vale então a pena seguir este chamamento? Deixo que Jesus responda a esta pergunta, pois foi o que me respondeu mais uma vez com a abertura de um Evangelho ao calhas numa altura de maiores dúvidas:

«Pedro começou a dizer-Lhe: “Eis que nós deixámos tudo e Te seguimos”. Jesus declarou: “Em verdade vos digo que não há quem tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa ou por causa do Evangelho, que não receba cem vezes mais desde agora, neste tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições; e, no mundo futuro, a vida eterna. Muitos dos primeiros serão últimos, e os últimos serão primeiros”». (Mc 10, 28-31)

E termino com São Paulo:
«Nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam.» (1Co 2, 9)

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