Ao analisar a questão do papel dos salários justos no combate à pobreza, guiamo-nos por princípios que colhemos na doutrina social da Igreja e que se vêm consolidando desde há mais de um século. Esses princípios partem do primado da pessoa sobre as coisas. A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e não o contrário (“o trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). É este o sentido do tradicional princípio do primado do trabalho sobre o capital (ver Laborem exercens, ns. 7 e 13). Não deixando de ser complementares e não antinómicos, o capital (o conjunto dos meios de produção) deve servir de instrumento ao serviço das pessoas que integram a comunidade que constitui a empresa (e não o contrário), a sua rendibilidade não pode sacrificar a dignidade e direitos dessas pessoas.
Através do trabalho, a pessoa não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas necessidades, mas também se realiza como pessoa e, num certo sentido, se torna “mais pessoa” (ver Laborem exercens, n. 9).
Para além da diferente valorização do trabalho na sua vertente objetiva, que pode justificar diferenças salariais, há que considerar a sua vertente subjetiva, enquanto expressão da dignidade da pessoa que trabalha, vertente que torna igualmente digno qualquer trabalho, mais ou menos qualificado (ver Laborem exercens, n. 6).
A Sagrada Escritura fustiga severamente a conduta de quem não paga o salário devidos aos trabalhadores: Lv 19, 13; Dt 24, 14-15; Tg 5, 4
A justiça do salário não decorre necessariamente do consentimento das partes e das regras do mercado. Já o dizia a Rerum novarum (n. 27), há mais de cem anos:
«Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.
«Mas, sendo de temer que nestes casos e em outros análogos, como no que diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, a intervenção dos poderes públicos seja importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares, será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos (…), ou que se recorra a outros meios de defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se a questão o reclamar».
A justiça de um sistema socio-económico dever ser apreciada segundo o modo como nesse sistema é equitativamente remunerado o trabalho; a melhor forma de realizar a justiça nas relações entre trabalhadores e dadores de trabalho é a que se concretiza nessa remuneração (ver Laborem exercens, n. 19).
Como definição do salário justo, afirma a Gaudium et Spes (n. 67): «…tendo em conta as funções e produtividade de cada um, bem como a situação da empresa e o bem comum, o trabalho deve ser remunerado de maneira a dar ao homem a possibilidade de cultivar dignamente a sua vida material, social, cultural e espiritual e a dos seus».
Um salário justo deve atender às necessidades familiares do trabalhador, pois é ele que torna possível a constituição de uma família, que é um direito fundamental e uma vocação da pessoa (ver Laborem exercens, n. 10). Tal não exclui a importância de apoios públicos à família, segundo critérios de justiça social.
Há que destacar uma tríplice relação do salário: com o sustento do trabalhador e sua família, com a situação da empresa e com o bem comum (ver Quadragesimo anno, n. 4). A remuneração deve ser adaptada às possibilidades da empresa, de modo a não comprometer a sustentabilidade desta, mas deve questionar-se a viabilidade de uma empresa que não consiga assegurar níveis salariais compatíveis com o sustento dos trabalhadores. Deve, também, ser tida em conta a repercussão dos níveis salariais no bem comum, designadamente na criação e manutenção do emprego em termos globais.
A criação e manutenção de postos de trabalho é uma forma de concretizar a função social da propriedade privada e o destino universal dos bens (ver Centesimus annus, n. 43). A missão do empresário deve ser enaltecida enquanto meio de criar oportunidades de trabalho para outros, «um modo de desenvolver as capacidades que Deus nos deu e as potencialidades de que encheu o universo» (ver Fratelli tutti, n. 123).
No combate à pobreza, é fundamental a criação de empregos justamente remunerados. Os subsídios devem ser sempre «um remédio provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma vida digna através do trabalho (ter a dignidade de «trazer o pão para casa»). «O trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se co-responsável do mundo e, finalmente, viver como povo» (ver Fratelli tutti, n. 162).
Baseados nestes princípios que colhem da doutrina social da Igreja, e analisando a situação portuguesa atual, as organizações subscritoras deste manifesto declaram o seguinte:
Verificamos como o salário que recebem muitos trabalhadores portugueses não lhes permite, a eles e suas famílias, superar uma situação de pobreza enquanto privação de recursos necessários a uma vida condigna no contexto social atual. Isso verifica-se em grande número de trabalhadores que auferem o salário mínimo, sendo que o salário médio também não se distancia muito deste. Mudar esta realidade o mais rapidamente possível deverá ser um objetivo prioritário que mobilize as empresas, a sociedade civil e as autoridades políticas.
Verificamos também que essa situação de baixos salários coexiste com outros muito elevados, gerando acentuadas desigualdades que consideramos socialmente injustas. São de aplaudir todos os esforços e políticas que evitem essas desigualdades de níveis salariais.
Sabemos que a qualificação profissional é muitas vezes essencial para obter melhores remunerações. Neste plano, somos confrontados com mudanças profundas a que não podemos ser alheios, como a revolução digital e tecnológica, a emergência climática e a necessária transição energética. Perante este desafio, as empresas deverão promover a formação e reciclagem dos trabalhadores e estes deverão fazer tudo o que está ao seu alcance nesse sentido.
Mas também não podemos esquecer a importância de remunerar justamente trabalhadores geralmente tidos por menos qualificados. O contexto de pandemia que vivemos nos últimos anos veio recordar-nos a indispensável função social de profissões habitualmente mal remuneradas: o trabalho agrícola, a limpeza urbana, o apoio doméstico, os cuidados de saúde e a idosos, a ação educativa, o comércio e a restauração, entre outros.
Neste ponto, queremos também reforçar que os baixos valores protocolados pelo Estado com as instituições de solidariedade social pelos serviços prestados levam à manutenção de níveis baixos de remuneração dos seus trabalhadores e ao não reconhecimento da relevância social das suas funções.
É de salientar também o facto de em muitas destas profissões, por não haver mão de obra disponível no país, se recorrer a trabalhadores imigrantes, por vezes através de subcontratações que não garantem os direitos fundamentais destes.
Sabemos como a valorização dos salários dos trabalhadores portugueses em grande medida depende do aumento da produtividade, da capacidade de empresários e trabalhadores reforçarem a produtividade das suas empresas. Mas reconhecemos também que a valorização desses salários depende da decisão de repartição dos rendimentos, da atribuição objetiva de uma maior parcela desses rendimentos aos do trabalho.
Declaramos, em síntese, o empenho das organizações que representamos e de todos os que a elas aderem, trabalhadores e empresários com diversos estatutos e de variadas áreas, em fazer toda a nossa parte para que se concretize aquele que consideramos um desígnio nacional prioritário: que no nosso país aqueles que trabalham possam ter salários que permitam superar a pobreza e promover a realização integral de cada pessoa e de cada família.
Este é um caminho longo e complexo, que queremos iniciar hoje, na primeira pessoa e com a Graça do Espírito Santo, e ao qual convidamos todos a juntarem-se.
Lisboa, 21 de janeiro de 2023
Ação Católica Rural
Associação Cristã de Empresários e Gestores
Cáritas Portuguesa
Comissão Nacional Justiça e Paz
Juventude Operária Católica
Liga Operária Católica /Movimento dos Trabalhadores Cristãos
Metanoia – Movimento Católico de Profissionais