Luigino Bruni: “a economia é a gramática da linguagem social”

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“Não será apenas um encontro onde professores falam e os jovens tiram apontamentos, mas onde os jovens falam e nos dizem a sua opinião sobre o mundo, a economia, a pobreza, o ambiente, porque têm coisas para dizer e nós devemos apenas escutá-los”. É assim que, em entrevista, o director científico de a “Economia de Francisco”, Luigino Bruni, resume o que se espera do evento que reunirá, em Assis, os mais de dois mil jovens que responderam ao convite dirigido pelo Papa para revisitarem a economia e conferirem-lhe prioridade “se queremos mudar o mundo num sentido humanista e cristão”
POR HELENA OLIVEIRA

Em Junho de 2018, e no seguimento do Sínodo dos Jovens, o Papa Francisco dirigiu um convite a jovens de todo o mundo, em particular a economistas, líderes e empreendedores sociais, com a premissa de fazer com eles “um pacto para mudar a economia actual e dar uma alma à economia do amanhã”. Esta iniciativa foi em grande medida impulsionada pelo economista e professor Luigino Bruni, que viria a ser designado director científico do encontro “Economia de Francisco”. Entretanto, a iniciativa, que deveria ocorrer nos dias 26 a 28 de Março em Itália, foi adiada para os dias 19 a 21 de Novembro, em virtude do impacto da epidemia do COVID-19, a nova estirpe do coronavírus, e os mais de dois mil jovens com menos de 35 anos, provenientes de 115 países, incluindo Portugal, terão agora de esperar mais alguns meses para o grande encontro que terá lugar na cidade de Assis.

Porque foi designado pelo Papa para ser o director científico do evento, e por todo o empenho que tem demonstrado na antecipação do mesmo, o VER entrevistou o Professor Luigino Bruni (antes de o evento ter sido adiado) sobre as grandes linhas orientadoras desta reunião sem precedentes, na qual participarão também economistas “seniores” de renome, como o Prémio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, o Prémio Nobel da Economia em 1998, Amartya Sen, Jeffrey Sachs ou Stefano Zamagni, entre vários outros.

Na entrevista que se segue, o economista e professor Luigino Bruni fez saber que um dos objectivos de a “Economia de Francisco” é a formulação de propostas relativamente a 12 âmbitos da vida económica: trabalho e cuidado; gestão e dom; finança e humanidade; agricultura e justiça; energia e pobreza; lucro e vocação; políticas para a felicidade; CO2 da desigualdade; negócios e paz; economia é mulher; empresas em tradição; vida e estilos de vida. E alerta: “há necessidade de uma mudança de paradigma e de colocar a tónica na dimensão do “nós”.

Enquanto membro do comité organizador do evento “A Economia de Francisco”, como explica o seu significado mais alargado e o que tem estado a ser feito em sua antecipação?

O evento “A Economia de Francisco” acolherá, de 19 a 21 de Novembro, em Assis, 2000 jovens economistas e empreendedores de 115 países, convocados pelo Papa Francisco para estabelecer com eles um “pacto” para mudar a economia actual e dar uma alma à economia do futuro. Um encontro no qual serão os jovens os protagonistas, onde se utilizará a sua linguagem e partir-se-á das suas perspectivas e das suas próprias questões. Uma experiência que, nos lugares de São Francisco em Assis, dará espaço à meditação, à escuta, a colóquios pessoais com economistas, empreendedores e especialistas, alternando com momentos de trabalho para formular propostas de mudança relativamente a 12 âmbitos da vida económica actual, que serão apresentadas ao Papa Francisco. Esta é, desde logo, uma primeira mensagem: dar espaço aos jovens e não ocupar cada espaço. O Papa Francisco disse-o várias vezes: é necessário activar processos e não ocupar espaços. E se é um processo verdadeiro, não podemos dizer tudo agora, porque não se pode construir um processo antes que aconteça. Segundo os teóricos da generatividade sabemos que os processos se despoletam verdadeiramente só se forem deixados livremente: aquilo que geras não controlas, pode e deve surpreender-te. É claro que, como organizadores, estamos a trabalhar para criar as melhores pré-condições para que os jovens participantes no evento de Assis vivam uma experiência capaz de gerar um processo. Um processo que já começou nestes meses, que terá um momento importante em Assis e que depois continuará.

Esta iniciativa junta duas prioridades do Pontificado de Francisco: os jovens e a economia. Como se espera que os jovens façam a diferença neste mundo de indiferença e no qual os líderes não envidam os esforços suficientes para resolver os principais problemas globais? E, a seu ver, quais são as expectativas do Papa para este evento?

A Igreja nas últimas décadas deu muita importância às escolas de formação política, ou de bioética, mas não deu às de economia: não eram consideradas prioritárias para a formação dos leigos. Pelo contrário, este Papa entendeu que sem a existência de uma era de um novo pensamento económico não se chega a lado nenhum, porque hoje a economia é a gramática da linguagem social. É um grande factor de inovação ter compreendido que a economia é uma prioridade se queremos mudar o mundo num sentido humanista e cristão. O Papa Francisco convocou para Assis jovens economistas e empreendedores de todo o mundo, para mostrar e pensar uma economia diferente da que hoje exclui e ‘mata’ milhões de pessoas sobre a Terra. Francisco deu sempre uma grande importância à necessidade de uma economia sustentável e ecológica, que cuide da casa comum e que não descarte os mais frágeis e pobres. O facto de o Papa ir a Assis para firmar um pacto com os jovens para mudar a economia de hoje e de amanhã é um gesto profético. A ideia de Francisco é a de que os jovens não são o futuro, mas o presente. O Papa irá a Assis para escutar os jovens, para se deixar surpreender por eles. Creio, portanto, que haverá um grande protagonismo de pensamento e da praxis dos jovens, que hão-de exprimir as suas ideias sobre o mundo, porque já o estão a mudar nos âmbitos da ecologia, da economia, do desenvolvimento, da pobreza. Lá estarão jovens estudiosos, empreendedores e também changemakers de todo o mundo, que irão trazer as vozes e as aspirações dos últimos e dos mais frágeis. Será, sobretudo, o momento no qual os jovens irão firmar um pacto solene com o Papa Francisco, assegurando o seu empenho para mudar a economia. Este será o coração do evento.

Na encíclica Evangelii gaudium , e depois na Laudato si’, o Papa denunciou vigorosamente o estado patológico de uma grande parte da economia global, referindo-se a “uma economia que mata” e demonstrando que ao matar tanto as pessoas como o ambiente, mata igualmente o futuro. Se a economia não mudar, quais são as mais complexas consequências que podemos esperar para um futuro próximo?

Hoje, é evidente que o capitalismo e a teoria económica que o sustenta não funcionam em alguns dos grandes temas. Após a queda do muro de Berlim, muitos deixaram levar-se por um certo optimismo sobre a capacidade do capitalismo resolver os nossos problemas: todavia, nos últimos anos, este optimismo foi transformado na certeza de que, de facto, não funciona. Se não alterarmos rapidamente o paradigma, efectivamente, destruiremos o planeta, os bens comuns, os bens relacionais, isto é, o que se refere às relações humanas não instrumentais.

É evidente que no problema do aquecimento global se manifestaram lacunas mais subtis: a insustentabilidade ambiental é uma linguagem que nos fala de outras insustentabilidades. Quando um sistema económico não sabe conservar o lugar que o alimenta e o faz viver, na verdade, já está a atravessar uma grave crise. A crise ambiental é uma crise muito radical, que nos obriga a repensar a teoria económica desde os seus fundamentos.

Um elemento que não soubemos prever é representado pelos efeitos de certos processos que predominaram nos últimos decénios: por exemplo, não temos sido capazes de fazer previsões correctas sobre o futuro de certas taxas de emissão de dióxido de carbono. Subestimámos sempre quem falava sobre isso com preocupação – porque, evidentemente, há grandes interesses envolvidos. E tendemos a subestimar os efeitos que não nos são próximos: damos muita importância aos efeitos que nos tocam no momento, porém, muito pouca àqueles que só nos afectarão daqui a uns anos.

À questão estritamente ecológica deve acrescentar-se imediatamente a dimensão da desigualdade e, portanto, das várias formas de pobreza que continuam a clamar por justiça. Por isso, não nos podemos focar apenas no aspecto mais urgente e visível da insustentabilidade (a do ambiente natural) e negligenciar as restantes, das quais, basicamente, depende. Penso, por exemplo, no governo das empresas: nos dirigentes que hoje as gerem de forma insustentável. São muitos os jovens que não trabalham e demasiados os que trabalham demais, que são espremidos, explorados por um modo de entender a gestão e a empresa, sobre o qual se reflecte pouco. No mundo, existe uma cultura de empresa doentia que pensa que, pagando mais, se pode obter tudo das pessoas, até a alma. Esta cultura está a matar muitas pessoas, até fisicamente. Um segundo ponto importante é o da meritocracia, uma palavra bonita que, porém, está a tornar-se uma forma para descartar aqueles sem mérito, os pobres. Dever-se-ia partir destes dois pontos para mudar o capitalismo.

“Mudar a economia de hoje e dar uma alma à economia do amanhã” é, nas palavras do Papa, uma das mais importantes premissas do Encontro de Assis. Enquanto economista e académico, acredita que existe uma capacidade genuína para uma verdadeira mudança no actual sistema económico?

A Economia de Francisco nasce com os jovens, nasce da ideia do Papa se dirigir a quem se está a formar hoje para uma economia do futuro, a pessoas que ainda têm uma capacidade e disponibilidade para a mudança. Nós, em Assis, focamo-nos nos jovens porque se queremos ter esperança, devemos esperar com eles. E ouvi-los-emos. Será um encontro dedicado ao pensamento económico dos jovens; não será apenas um encontro onde professores falam e os jovens tiram apontamentos, mas onde os jovens falam e nos dizem a sua opinião sobre o mundo, a economia, a pobreza, o ambiente, porque têm coisas para dizer e nós devemos apenas escutá-los.

Até hoje temos sido governados por um capitalismo que se construiu em torno do conceito de que a riqueza seria uma espécie de bênção de Deus e que o bem-estar corresponderia a um acumular de coisas. Paradoxalmente, esta visão produziu a crise ambiental e também a crise relacional. Devemos reaprender uma ética que vê o bem-estar não só na produção crescente de bens, mas também no saber preservar os que já possuímos. Talvez o século XXI veja uma nova era: hoje o mundo necessita mais de relacionamentos comunitários do que de mercadorias. Há necessidade de uma mudança de paradigma e de colocar a tónica na dimensão do “nós”. Esta é uma alternativa relativamente ao modo como se ensina e se pratica economia actualmente, onde se raciocina sobre o indivíduo, que decide e age como se não houvesse nada ao seu redor. Não destruímos as coisas sempre e necessariamente por maldade, mas porque cada um o faz pelo próprio interesse e, quando nos apercebemos, já é tarde demais.

A Economia de Francisco é um processo iniciado para oferecer aos jovens uma pátria ideal (Assis), de onde se partirá para encontrar uma relação integral com o oikos. Uma nova ecologia não é viável sem uma nova economia – se o oikos é um só, não é concebível nem exequível uma ecologia integral sem uma economia integral.

Nota: Na sequência da Semana da “Economia de Francisco”, organizada em Lisboa, pela ACEGE-NEXT, AESE Business School, NOVA SBE e a UCP, o Prof. Luigino Bruni respondeu a esta entrevista sobre as motivações do Papa para o grande encontro em Assis.

Um agradecimento especial a Filipe Coelho e à AESE Business School, que envidaram todos os esforços para que esta entrevista fosse respondida. Sem o seu apoio, tal não teria sido possível.