Jeff Bezos: o homem mais rico do mundo é sovina e mau patrão

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Não só roubou a coroa de rei dos bilionários a Bill Gates, como ficará para a História como o homem que pela primeira vez ultrapassou a fasquia dos 100 mil milhões de dólares no ranking dos mais ricos dos ricos anualmente elaborado pela revista Forbes. O fundador e CEO da Amazon pode ter chegado ao topo da glória financeira, mas continua a deixar muito a desejar na forma como trata os seus trabalhadores e na alergia que parece ter em partilhar a sua riqueza com os outros
POR 
HELENA OLIVEIRA

Jeff Bezos, o fundador e CEO da gigantesca Amazon, dono do The Washington Post, adquirido em 2013 por 250 milhões de dólares e proprietário da empresa aerospacial Blue Origin é actualmente o homem mais rico do mundo, com uma fortuna líquida avaliada em mais de 130 mil milhões de dólares e de acordo com o ranking da Forbes divulgado a 9 de Março último. Mas e ao contrário dos seus companheiros de fortuna, que cientes da sua afortunada sorte se esforçam por “dar de volta à sociedade”, Bezos é considerado um “caso estranho” no mundo da filantropia. O mesmo acontece face ao seu estilo de liderança e à cultura de secretismo que rodeia os Amazonianos, várias vezes considerada como brutal e “darwiniana”, na medida em que são muitos os que a ela não se adaptam e, simplesmente, são “extintos”, abandonando ou sendo obrigados a abandonar as fileiras da poderosa e colossal retalhista online.

A história de Jeff Bezos tem alguns dos ingredientes comuns à receita do velho sonho americano, motivo que ajuda às muitas críticas de que é alvo face à sua aparente ausência de “consciência social”. Criado pelo padrasto Mike Bezos, um imigrante cubano, desde os quatro anos, foi na adolescência que desenvolveu a sua paixão pelos computadores – licenciou-se em Princeton, com distinção, em ciências da computação e engenharia electrotécnica – e que deu início ao seu primeiro negócio, um campo de férias de Verão para alunos do 4º ao 6º ano de escolaridade.

Tal como outros seus parceiros da indústria tecnológica, Bezos desistiu de uma bem-sucedida e lucrativa carreira em Wall Street para dar início, numa garagem, ao arriscado – para a época – negócio de uma livraria online. Em Julho de 1995, nasceria a Amazon (que estava para se chamar Cadabra, de Abracadabra), que muito mais cedo do que Bezos e o incumbente mercado electrónico imaginariam, se tornou um sucesso, vindo a diversificar a sua oferta e a transformar-se num dos negócios tecnológicos mais bem-sucedidos do mundo. A compra do The Washington Post em 2013 e a paixão pelas aventuras no espaço – Bezos foi esta semana agraciado com o Buzz Aldrin Space Exploration Award, em cuja cerimónia voltou a declarar que pretende tornar as viagens pelo espaço “tão dinâmicas e empreendedoras quanto a Internet” – fazem deste homem um ícone dos tempos modernos mas, e ao contrário de muitos dos seus pares, é uma figura pouco simpática aos olhos do público em geral, deixando atrás de si um rasto de antipatia, acusações de “líder brutal” e muito pouco dado a dispor de parte da sua fortuna para ajudar os outros. Em particular agora, altura em que assume a primeira posição no pódio dos multimilionários, a pressão para um contributo filantrópico é cada vez maior e, justa ou injustamente, esta “dívida” de quem tem muito ser-lhe-á crescentemente cobrada. Mas Bezos não é um Bill Gates ou um Warren Buffett e, mesmo cedendo a alguma pressão, quer fazer um outro tipo de filantropia. E são muitos os que afirmam que deveria começar, em primeiríssimo lugar, por ser um filantropo “em casa própria”, ou seja, por ser mais humano com os seus mais de 117 mil funcionários. Vejamos porquê.

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“A injustiça não é ilegal”

Em Agosto de 2015, o The New York Times dedicaria um extenso artigo sobre a cultura tóxica que se vivia no interior da Amazon e que muito deu que falar. Com dificuldades em encontrar empregados que tivessem a coragem de contar, a viva voz, o que há muito se dizia sobre o ambiente despótico, hiper-vigiado e de alta tensão do gigante de comércio electrónico, o reconhecido jornal americano conseguiria, contudo, encontrar material – e pessoas – suficiente para descrever o que para uns consiste numa forma genial de se liderar uma empresa e, para outros, uma brutalidade sem limites onde os “perdedores” desistem ou são obrigados a desistir de constar da folha de salários da empresa fundada pelo actual homem mais rico do mundo.

Nesta peça de fundo, escreve-se que na Amazon “os trabalhadores são encorajados a ‘despadaçar’ as ideias uns dos outros nas reuniões, a trabalhar arduamente e por longos períodos (com emails que chegam depois da meia-noite, seguidos por mensagens de texto a perguntar porque ainda não foram respondidos) e a cumprir padrões que a própria empresa considera orgulhosamente como ‘irrazoavelmente elevados’”. Trabalhar arduamente e fora de horas não é, e na verdade, nada de estranho na maioria das grandes tecnológicas – e não só – com a ligeira diferença de que, a contrário por exemplo da Google e do Facebook, onde se cultiva um ambiente de bem-estar para os empregados, com mimos de ordem variada para “compensar” as muitas horas que se dá à empresa, na Amazon não só não se perde tempo e dinheiro com estas benesses, como ainda se instiga a “sabotagem do trabalho do colega do lado”, se está subjugado por um manancial de dados que permitem medir a performance de forma contínua e onde se obriga as equipas a fazer muito mais por menos dinheiro.

Através da denominada Anytime Feedback Tool, uma ferramenta que permite que se enviem queixas ou elogios sobre os colegas aos seus respectivos gestores, cumpre-se com outro “valor” da cultura da empresa: porque os membros das equipas são avaliados constantemente e aqueles que ocupam as piores posições nestes rankings são “eliminados” todos os anos, é do interesse de todos “ser melhor do que o colega do lado”, o que obviamente cria um ambiente de suspeição, intriga e paranóia muito pouco saudável.

Adicionalmente e como conta o NYT, “nos armazéns da Amazon, os trabalhadores são monitorizados por sistemas electrónicos sofisticados que asseguram que estes estão a embalar caixas suficientes por hora” e é recordado um dos episódios que, em 2011, colocou a gigante do comércio electrónico debaixo de fogo quando, em um dos seus armazéns, o calor era tão intenso que existiam ambulâncias à porta – contratadas pela própria empresa – para levar os empregados ao hospital à medida que estes desmaiavam. A história, contada em pormenor num excerto do livro Mindless: Why Smarter Machines are Making Dumber Humans, publicado pela Salon.com em 2014, foi um escândalo de enormes proporções na altura e obrigaria” a Amazon – e demasiado tempo depois – a instalar ar condicionado nos seus armazéns onde as temperaturas chegaram a ultrapassar os 37 graus CelsiusNeste mesmo excerto, intitulado Worse than Wal-Mart: Amazon’s sick brutality and secret history of ruthlessly intimidating workerso autor Simon Head detalha barbaridades de natureza variada, passadas em particular nas linhas de embalagem da Amazon, tanto nos Estados Unidos, como no Reino Unido e na Alemanha, ao mesmo tempo que recorda a alergia de Bezos a qualquer tentativa de sindicalismo que possa proteger os seus empregados.

Em uma das empresas mais (re)conhecidas do mundo, o secretismo continua a ser lei e, como também se pode ler na peça do NYT, a vida no interior  das suas paredes permanece um mistério, na medida em que até os empregados dos níveis hierárquicos mais baixos são obrigado a assinar extensos contratos de confidencialidade. Para a reportagem do The New York Times, apenas um conjunto reduzido de gestores sénior foi autorizado a falar, com o CEO e os líderes executivos a declinar disponibilidade para entrevistas. E, depois de publicado o artigo, a Amazon retaliou fortemente contra o jornal, acusando-o de prestar falsas declarações e erros variados. Adicionalmente e ainda no rescaldo da investigação do The New York Times, um grupo denominado FACE – Former and Current Employees of Amazon foi formado com vista a pressionar a empresa a fazer reformas na forma como trata os seus trabalhadores e continua, ainda hoje, a tentar que estes se possam sindicalizar, sem qualquer êxito. Pior ainda, e como foi reportado em vários meios de comunicação, qualquer tentativa mais séria para a criação de um sindicato é simplesmente “esmagada” pela Amazon com um clima de medo e ameaça simples: se se querem sindicalizar, vão para a rua pois o vosso trabalho pode ser feito por qualquer outra pessoa.

Todavia, e apesar de relatos verdadeiramente desumanos face à forma como muitos empregados são tratados – desde jovens mães ou trabalhadores com problemas graves de saúde como o cancro que, não “cumprindo os objectivos de performance” são colocados naquilo que a empresa chama de “plano de melhoria de performance” ou o código da Amazon que alerta para “a iminência de ser despedido”, muitos são também os trabalhadores que admiram a forma como a empresa é gerida, sentindo-se até “viciados” na sua peculiar – um termo de orgulho para os Amazonianos – cultura de trabalho.

Tal como escreve John Rossman, autor do livro The Amazon Way: 14 Leadership Principles Behind the World’s Most Disruptive Company e um antigo executivo da empresa, “muita gente que ali trabalha sente esta tensão: é o melhor dos sítios em que eu odeio trabalhar”. Nas entrevistas conseguidas para o artigo do NYT, foram igualmente vários os que afirmaram que o seu crescimento na Amazon se deveu exactamente ao facto de a empresa os obrigar a ultrapassar os seus próprios limites e outros tantos que admiram profundamente a sua cultura combativa e de competitividade extrema. E, tal como afirma uma advogada no artigo em causa, a “injustiça não é ilegal”, mesmo que os casos de abusos e de discriminação – para além dos que “não se adaptam” e seguem a via da extinção, a Amazon é das poucas empresas tecnológicas que não tem uma única mulher na sua equipa de liderança de topo – sejam muitos e tenham chegado às luzes de ribalta por diversas vezes. Mas e até agora, o fundador e CEO tem-se safado muito bem, ignorando as críticas e os escândalos, tal como tem feito no que respeita à sua ausência de interesse para partilhar um pouco da sua colossal fortuna com os menos afortunados. Pelo menos até agora.

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Diga trinta e três, com muito custo

Com o peso de deter, actualmente, a maior fortuna do mundo vem, inevitavelmente, a pressão de dizer a esse mesmo mundo quais os planos que tem para partilhar uma parte que amealhou. Mas e ao contrário dos demais membros do clube dos multimilionários, Bezos não é muito dado a filantropias ou a actos de caridade.

Realizado, há 18 anos, pelo The Chronicle of Philanthropy, o ranking Philanthropy 50 apresenta, e como o nome indica, os 50 mais generosos filantropos da América, lista onde Jeff Bezos e até agora, não consta, apesar de merecer umas linhas de apreço por, finalmente, estar a entrar no mundo do “giving back”. Mas lá chegaremos. Divulgado em Fevereiro de 2018 – e com dados relativos a 2017 – esta meia centena de milionários contribuiu, entre donativos, investimentos em projectos sociais e através das fundações de muitos deles – com 14, 7 mil milhões de dólares, o que representa o valor mais elevado desde 2008 e uma média de 97 milhões por cada um dos generosos.

Bill Gates, que em 23 anos esteve no topo da lista dos multimilionários da Forbes 18 vezes, continua a posicionar-se – em conjunto com a mulher Melinda e através da fundação que ambos dirigem – no topo do Philanthropy 50, graças aos 4,8 mil milhões de dólares que doaram para causas diversas, seguido pelo casal Mark Zuckerberg e Priscilla Chan, que também através da sua fundação doaram dois mil milhões de dólares. Na verdade, e neste top 50, 11 figuras da indústria tecnológica doaram, em conjunto, 8,7 mil milhões de dólares ou 60% do total combinado da meia centena de filantropos. E Bezos?

Bem, como já mencionado, a visão da “caridade” do CEO da Amazon é mais próxima da forma como construiu – e continua a construir – o seu império, preferindo investir a sua fortuna em negócios com fins lucrativos, como a compra do The Washington Times, e afirmar que salvar o jornal é a sua forma de ajudar “os próximos”, ou a Whole Foods, com argumentos similares, o mesmo acontecendo com o seu empreendimento aerospacial, a Blue Origin, o qual apresenta como “um empreendimento humano que pretende salvar a humanidade de um planeta em perigo”. Mas, e por outro lado, como afirma Stacy Palmer, editor da Chronicle of Philanthropy, à revista Wired, não é assim tão incomum entre os milionários da indústria tecnológica a consideração de que “a filantropia não é a única forma de resolver os problemas societais”.

Decerto que não é, mas ajuda. E, de acordo com contas não muito difíceis de fazer, a verdade é que se Bill Gates não tivesse doado, ao longo da sua vida e até 2016, 31,1 mil milhões de dólares para as causas que acerrimamente defende, Bezos não seria hoje o homem mais rico do planeta. Gates, que criou, em conjunto com Warren Buffet, o famoso Giving Pledge, o qual encoraja os multimilionários a doarem pelo menos metade da sua fortuna a causas caritativas, não conta, entre os 175 afortunados que já se comprometeram a fazê-lo, com Jeff Bezos. Mas apesar de as diferenças serem mais do que significativas, Bezos vai contribuindo, aqui e ali, para algumas causas, com alguns meios de comunicação a estimar que, até hoje, já despendeu 100 milhões de dólares em donativos pontuais. O que é uma gota de água no oceano dos seus milhares de milhões, continua a ser também motivo de reprovação no mundo do escrutínio contínuo, com as más línguas a não deixarem de recordar que o fundador da Amazon prefere gastar o seu dinheiro naquela que é também a maior e mais luxuosa casa de Washington D.C.

Apesar de não ser crime gastar o seu dinheiro no que bem lhe apetecer, Bezos não perde o rótulo de sovina, mais a mais quando tem um irmão, bombeiro voluntário e gestor de uma organização de combate à pobreza chamada Robin Hood e quando são os seus pais a gerir a fundação da família Bezos.

Talvez por tudo isto, e cansado de ser uma espécie de ovelha negra não só da família, como do mundo da filantropia, Bezos deu, finalmente, um ar de sua graça em Junho do ano passado ao ter publicado um tweet no qual “pedia ideias” para a sua estratégia de filantropia. Mas só mesmo depois de, e mais uma vez, o The New York Times ter insistido sobre tão incómodo assunto.

Todavia e mais uma vez ao contrário da maioria dos seus pares, o CEO da Amazon já fez saber que não pretende apoiar causas com resultados que demorem demasiado tempo, preferindo investir o seu dinheiro em empreendimentos com feitos mais imediatos. Depois de alguns rumores, é exactamente a Chronicle of Philanthropy que, e a propósito da sua edição deste ano, vem dar a boa e tão esperada notícia: a organização sem fins lucrativos TheDream.US será a feliz contemplada da primeira “abertura de bolsos” mais à séria de Jeff Bezos, o qual se comprometeu a doar 33 milhões de dólares, o suficiente para custear a educação universitária de 1000 estudantes imigrantes e sem documentos a residir nos Estados Unidos.

De acordo com o artigo da Chronicle of Philanthropy, e depois dos milhares de respostas ao seu tweet, a escolha desta organização poderá ter sido influenciada pela proximidade do seu fundador a Bezos: Don Graham, anterior CEO e presidente do conselho de administração do The Washington Post, criou a TheDream.US pouco tempo depois da aquisição do jornal por parte de Bezos e, reza a história, aproveitou a ocasião para enviar um email ao próprio.

Numa declaração sobre o donativo e de acordo com o próprio Graham, Bezos recordou que o seu pai (padrasto) imigrou de Cuba para os Estados Unidos com 16 anos sem saber falar inglês.

Como é citado no artigo: “Com muita coragem e determinação – e com a ajuda de algumas organizações notáveis em Delaware – o meu pai transformou-se num cidadão admirável, continuando a dar de volta ao país que ele sente tê-lo abençoado de tantas formas. A Mckenzie [a mulher] e eu sentimo-nos honrados em podermos ajudar os Dreamers de hoje financiando as suas bolsas académicas”.

Trinta e três milhões de dólares não é uma quantia para se desprezar. Mas e comparativamente aos 4,8 mil milhões de dólares desembolsados por Bill Gates só num ano, parece que o homem que “vale” 130 mil milhões vai continuar a ser um Tio Patinhas da filantropia. Esperemos que assim não seja e que aprenda a servir trabalhadores e comunidades tão bem quanto sabe entregar encomendas a horas. Já sem ambulâncias à porta.