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As empresas existem para servir a sociedade?

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As empresas existem para servir a sociedade?

Seria bom que a frase acima fosse uma afirmação e não uma interrogação. Todavia, e para os mais optimistas e no que agora se apelida de “capitalismo de longo prazo”, a crença é a de que, mais cedo do que julgamos, os interesses dos stakeholders mais comummente identificados – empregados, clientes, fornecedores e comunidades – irão convergir com os próprios interesses da sociedade enquanto um todo. Até lá, porém, muito terá de mudar. E é sobre estas mudanças urgentes que o 6º Congresso da ACEGE irá versar. O VER convida a uma reflexão prévia sobre as mesmas
POR
HELENA OLIVEIRA

Que o mundo está em constante em mudança é uma das poucas premissas que parece reunir um consenso geral. Mas também é verdade que, em especial ao longo das duas últimas décadas, e em grande parte graças às forças da globalização e da tecnologia, o mundo interligado e interdependente tem vindo a enfrentar – ou a tentar fazê-lo –desafios gigantescos, sociais e ambientais, e absolutamente sem precedentes, os quais estão a obrigar a uma mudança radical em muitas áreas que julgávamos “seguras” e apenas passíveis de sofrerem evoluções graduais.

Entre variadíssimos pólos em mutação, o capitalismo, a economia e, por conseguinte, as empresas, têm sido palco de novas interrogações, interpretações, abordagens, modelos, muitos deles questionando o seu verdadeiro valor e o papel a desempenhar na perseguição de uma sociedade mais justa, equitativa e equilibrada.

Esta cruzada, porém, parece cada vez mais longínqua, pese embora as inúmeras iniciativas levadas a cabo por grandes instituições internacionais, pelo número crescente de organizações sociais, pelas múltiplas campanhas em prol dos direitos humanos, pelos esforços encetados por um número significativo de empresas, pela sociedade civil em geral e pelo esforço – sempre relativo – das lideranças nacionais e globais.

Afinal, as grandes promessas em nome do progresso não diminuíram as desigualdades de rendimentos – antes as exacerbaram -, a pobreza continua a envergonhar, a igualdade de géneros mantém-se uma miragem, a corrupção soma e segue, o sistema financeiro sai ileso das suas reengenharias, muitas empresas continuam a empregar mão-de-obra infantil, entre outros pecados, em complemento a um sem número de realidades sociais, económicas, políticas e (des)humanas, as quais, por força do hábito, já nem sequer nos parecem chocar.

Todavia e de forma crescente, uma grande tendência parece estar a tomar forma, assente em múltiplos novos modelos e iniciativas que, no final, partilham algo em comum: a noção de que as empresas, no seguimento do caminho que têm vindo a percorrer, em particular nos últimos anos, não podem apenas servir os interesses dos accionistas, acrescentando ao seu portefólio de “obrigações”, a necessidade de servir a sociedade, em particular, e de mitigar os grandes desafios globais, no geral.

Esta alteração de missão ou propósito implica transformações profundas ao nível de todas as operações que integram a empresa: não só na forma como agem os seus líderes – agora com responsabilidades acrescidas que vão além de assegurar boas condições de trabalho aos seus empregados e de ir ao encontro das necessidades dos seus clientes – mas também nos critérios das decisões que têm de tomar, que já não respeitam simplesmente as estratégias de gerar mais lucro e retorno para os seus accionistas, a par da forma como vivem o quotidiano nas suas empresas em conjunto com os seus colaboradores – fruto da diluição da gestão hierárquica e da ascensão da noção “colaborativa” ou de uma comunidade que trabalha em prol de um bem e objectivo comuns, até às novas dimensões que norteiam o próprio conceito de lucro e de remunerações.

[pull_quote_left]As empresas têm de adicionar ao seu portefólio de “obrigações”, a necessidade de servir a sociedade, em particular, e de mitigar os grandes desafios globais, no geral[/pull_quote_left]

Em 2013, a ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores – ousou eleger o “amor enquanto critério de gestão” como tema em debate no seu 5º Congresso. E o que parecia conter uma enorme dose de idealismo e descrença, mesmo para os gestores católicos, acabou por dar origem a um conjunto de reflexões de interesse significativo, complementadas por testemunhos de líderes que, nas suas empresas, tentam seguir a máxima de “tratar os outros como queremos que eles nos tratem a nós”, princípio este universal o suficiente para caber nos estilos de liderança de católicos ou não-católicos.

Afinal, nos últimos anos, a ideia de uma “cultura de propósito”, assente numa espécie de “chamada espiritual e moral” para a acção, de organizações que deixaram de tentar ser apenas as melhores do mundo, mas as melhores para o mundo, de plataformas de gestão e liderança que elegem novos modelos de crescimento mais “inclusivos”, ou o objectivo comum de se assumir que o compromisso com o bem social é compatível com o crescimento dos lucros, todas elas parecem incluir uma máxima análoga à acima citada.

Dois anos depois, a ACEGE optou pela continuidade da sua visão e missão enquanto associação de líderes cristãos para debater, no seu 6º Congresso, o qual terá lugar a 5 e 6 de Junho próximo, esta cultura de gestão e liderança – à luz do amor ao próximo – que está a ter um eco crescente um pouco por todo o mundo – com mais semelhanças do que diferenças – nos novos modelos que, de forma crescente, muitos líderes começam a defender, a adoptar e a implementar nas organizações que dirigem.

Na medida em que o VER tem vindo a acompanhar os novos percursos e ideias que colocam em causa os modelos de gestão e liderança que vigoram ainda em muitas empresas – e porque, como habitualmente, fará a cobertura do Congresso da ACEGE -, o objectivo deste artigo é lançar pistas para um debate que a todos interessa.

Para além da reflexão espiritual sobre o tema, a cargo, entre outros, do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, o evento contará com oradores de renome do meio académico e empresarial. O programa e respectivos oradores podem ser consultados aqui.

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Casamento entre empresas e sociedade em regime de comunhão de bens

Depois de vários e longos anos de discussão sobre as obrigações a que uma empresa está sujeita no que respeita aos seus variados stakeholders – e ultrapassada que está a visão míope de que apenas deviam prestar contas aos accionistas – o que é importante reter – pelo menos no que agora se apelida de “capitalismo de longo prazo” – é que, mais cedo do que julgamos, os interesses dos stakeholders mais comummente identificados – empregados, clientes, fornecedores e comunidades – irão convergir com os próprios interesses da sociedade enquanto um todo. E com o advento de novos modelos como o da criação de valor partilhado, da triple bottom-line e de variadíssimos movimentos similares, o reconhecimento da importância das abordagens multi-stakeholders e da necessidade de promover valor financeiro, ambiental e social é agora uma realidade inegável.

[pull_quote_left]Com o advento de novos modelos e movimentos que apelam a uma r(evolução) na gestão, o reconhecimento da importância das abordagens multi-stakeholders e da necessidade de promover valor financeiro, ambiental e social é agora uma realidade inegável[/pull_quote_left]

Por outro lado, existem razões mais do que suficientes para que sejam as empresas a assumir a iniciativa de gerar benefícios sociais em conjunto com os seus objectivos de negócio: em primeiro lugar, porque num mundo interligado e que enfrenta desafios sociais e ambientais sem precedentes, será a própria sociedade a exigi-lo. As expectativas de clientes, governos e comunidades recairão nas empresas, exigindo-lhes, crescentemente, que forneçam um retorno líquido positivo para a sociedade no geral, e não somente para os investidores em particular. O que consistirá parte de um contrato implícito ou da sua licença para operar. Por outro, o facto de se adicionar outras formas de retorno positivo e de melhorias nos seus sistemas irá resultar na sustentabilidade das empresas a longo prazo.

Todo este ambiente envolvente – e ao qual é impossível ficar indiferente – obriga a um redefinir da missão dos líderes empresariais, dos critérios a ter em conta para a sua tomada de decisão, da forma como se organiza e se operacionaliza o próprio trabalho no interior da empresa e também das novas dimensões relacionadas com o próprio lucro e com as remunerações, temas que serão debatidos no congresso da ACEGE, e que o VER irá desenvolver entretanto, tendo em conta uma perspectiva mais global e de acordo com iniciativas internacionais que começam a ter um peso e adesão significativos.

Sobre estas quatro temáticas, existem algumas premissas que devemos considerar a priori e que serão devidamente desenvolvidas ao longo das próximas semanas.

Sobre a primeira, o facto de a confiança nos líderes continuar em quebra acentuada aos olhos do público em geral e, na generalidade, serem as próprias empresas a não darem o valor devido ao economic case que tal representa: o que ganham e perdem com este défice de confiança e de que forma o mesmo tem impacto na sua performance, competitividade e reputação. Adicionalmente, há que ter em linha de conta que, apesar de valerem o que valem, as estatísticas apontam para que, em todo o mundo, 87% dos trabalhadores não se sentem envolvidos e comprometidos com o trabalho que fazem, uma percentagem demasiado pesada para ser ignorada. A verdade é que já não é possível seguir as “estafadas” e obsoletas práticas de gestão que se apoiavam no controlo, na eficiência e na disciplina, acima de qualquer outra coisa. O que consiste em mais um desafio, entre vários, para os líderes.

[pull_quote_right]As expectativas de clientes, governos e comunidades recairão nas empresas, exigindo-lhes, crescentemente, que forneçam um retorno líquido positivo para a sociedade no geral, e não somente para os investidores em particular[/pull_quote_right]

Sobre a segunda, e dado que, crescentemente, o ambiente em mutação em que as empresas operam tem, de forma crescente, de se adaptar aos “novos tempos”, há que sublinhar e interiorizar os efeitos desastrosos do imediatismo e do pensamento de curto prazo, da maximização do lucro e da visão do mundo centrada no retorno para o acionista. Não basta “lavar daí às suas mãos”: às empresas exigem-se tomadas de decisão que levem em consideração a premissa, já com resultados benéficos comprovados, que o compromisso com o bem-estar social é compatível com o crescimento dos lucros. Obviamente que, quando um líder é chamado a tomar uma determinada decisão, terá de ter em conta, obrigatoriamente e se não quiser ficar para trás, não só o impacto dessas mesmas decisões nos múltiplos stakeholders, mas também as tendências e preocupações globais que caracterizam o mundo da actualidade, desde as catástrofes ambientais cada vez mais “normais”, aos efeitos das alterações climáticas, aos desafios demográficos, à crescente desigualdade, entre outros.

No que respeita à terceira temática – que elege olhar e viver a empresa como se de uma comunidade a trabalhar em conjunto se tratasse – há que cimentar a noção de que todos os membros de uma organização devem partilhar expectativas e objectivos económicos, relacionais e éticos. Equilibrar as motivações individuais com os objectivos colectivos é também uma característica deste novo e desejável ambiente corporativo e também um desafio para os seus líderes. Ultrapassar a lacuna entre a consciência que muitos líderes apresentam no que respeita a exibirem comportamentos com base em valores e as acções que levam a cabo para implementar esses mesmos comportamentos – tendo sempre em vista o bem comum – é também urgente.

[pull_quote_left]Os inúmeros movimentos empresariais e académicos que discutem novas alternativas “à economia exploradora” – a qual se move pelo consumo desenfreado e pela perseguição do lucro a curto prazo, em conjunto com a proposta de novos modelos de crescimento e de “capitalismos inovadores” obrigam a uma redefinição do lucro e das suas componentes principais[/pull_quote_left]

Por último, a comunidade empresarial tem de estar atenta e disponível para encarar o lucro como um novo paradoxo emergente. Os inúmeros movimentos e bandeiras empresariais e académicos que discutem novas alternativas “à economia exploradora” – a qual se move pelo consumo desenfreado e pela perseguição do lucro a curto prazo, em conjunto com a proposta de novos modelos de crescimento e de “capitalismos inovadores” obrigam a uma redefinição do lucro e das suas componentes principais. A mistura do “propósito” com os lucros empresariais pode resultar numa equação bem-sucedida, acreditam muitos, na medida em que existem já muitos exemplos de que as organizações que se concentram mais nos resultados desta “cultura do propósito” do que unicamente nos valores em dólares ou euros que aparecem nos seus balancetes, têm mais probabilidade de atingir um sucesso longo e duradouro. E, por consequência, aumenta os níveis de envolvimento e produtividade dos seus trabalhadores, em conjunto com os seus resultados financeiros. A somar a estas questões, é imperativo igualmente olhar para a crescente desigualdade entre os que recebem remunerações obscenas e os que mal conseguem sobreviver ou a crescente disparidade, por exemplo, entre os chorudos bónus recebidos pela banca, como se uma simples borracha tivesse apagado todas as suas falhas de carácter que levaram milhões à bancarrota e que ficarão na história como os grandes responsáveis pela denominada Grande Recessão de 2008. Sem que lhes tivessem sido aplicadas quaisquer punições.

NOTA: Nas próximas edições, o VER dedicar-se-á a explorar estas quatro dimensões, tentando promover o debate não só para os que estarão presentes no 6º Congresso da ACEGE, mas para todos aqueles que acreditam que é tempo de adicionar novos valores e acções à gestão e liderança do século XXI.