“A nossa missão é estar no mundo para transformar o mundo”

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A Associação Cristã de Empresário e Gestores (ACEGE) continua a rever-se na missão e valores que levaram à sua criação em 1952. E sete décadas passadas persevera no seu propósito de conduzir as empresas e os seus líderes no sentido de um “bem maior”, de uma “economia do bem comum”, a par de uma “cultura do encontro” e de uma “sociedade do cuidado”. O VER entrevistou o presidente da Associação, João Pedro Tavares, numa antecipação das questões que serão debatidas no seu VII Congresso, a ter lugar em Maio próximo, e cuja temática principal assentará na lógica da “transformação”: de nós mesmos, das empresas e do país. Porque para o presidente da ACEGE o mundo não está ao contrário, há que existir, ao invés, “um olhar de enorme esperança sobre os desafios que se nos colocam e perguntarmo-nos ‘que posso eu construir a partir daqui?’”

A ACEGE realizará em Maio próximo o seu VII Congresso, o qual servirá também para assinalar os seus 70 anos de existência. O mundo mudou muito entretanto, o panorama empresarial sofreu alterações significativas e disruptivas mas, e à luz das várias gerações que passaram por esta Associação e que, por isso, fazem parte da sua história, os seus principais valores e propósito mantiveram-se. Enquanto presidente da ACEGE e a seu ver, quais os principais motivos que contribuíram para a manter “viva” ao longo de sete décadas?

“Inspirar os líderes empresariais a viver o Amor e a verdade como critérios de gestão e, com isso, transformar as empresas e influenciar a sociedade” é a nossa Missão, o nosso Propósito. Poderá parecer recente, mas não o é, na medida em que é fundacional e idêntico ao que presidiu ao lançamento da ACEGE (na altura UCIDT). É a “cola” que junta, que repara, que dá unidade, que dá forma. É intemporal nos valores e critérios superiores pelos quais se rege e não depende da “espuma dos dias”. É válido com ou sem pandemia, com ou sem paz, em crise ou em crescimento. É tão válido para a economia tradicional como para a economia digital, em conjunto com a extensa e contínua aplicação da tecnologia. Assenta em valores perenes, inspira a algo que nos ultrapassa, conduz-nos para o bem maior, para a economia do bem comum, para a cultura do encontro, para a sociedade do cuidado.

O maior mérito da ACEGE e dos seus membros foi sempre o de se manter fiel a este propósito e de não terem existido realidades que a tivessem desviado do seu caminho.

Para o congresso que se avizinha, o tema “chapéu” escolhido intitula-se “Uma realidade que transforma”. Em primeiro lugar, de que realidade se está a falar e quais os motivos que levaram a ACEGE a escolher este mote?

O foco reside nesta mesma realidade inspiradora que está contida no nosso lema, nos valores e na espiritualidade cristã que nos confere este sentido de missão. O entendermos, em contexto profissional, que tal como Cristo convidou os seus discípulos, pessoal e individualmente, nos convida a todos do mesmo modo.

Por isso mesmo, mais do que uma “realidade que me transforma”, é “uma relação que nos transforma”. Que nos obriga a questionarmo-nos “que me queres?”, “por onde me conduzes?”, “que farás em meu lugar?” ou melhor, “que farás comigo?” ou “que farei eu mesmo contigo?”. É o tomar consciência de que nada disto é incompatível, ou impossível ou sem sentido. Pelo contrário, é o verdadeiro “sentido das coisas”.

Partindo desta realidade, o congresso terá três temáticas principais:

  1. Uma realidade que me transforma
  2. Uma realidade que transforma a empresa
  3. Uma realidade que transforma o país

É capaz de nos falar um pouco destes três “blocos” – os quais contam, evidentemente com vários oradores – no que respeita às suas questões de partida e pistas para a sua posterior reflexão?

Não posso transportar para o mundo um compromisso distinto e renovado se não o viver dentro de mim e não o reconhecer! Ao predispor-me a vivê-lo, não o farei em benefício próprio, mas para benefício dos outros, de todos, como promotor de um bem maior. A primeira comunidade em que tenho de actuar são os meus próximos, os colaboradores, as suas famílias, mas também, os clientes, os fornecedores, os accionistas. E, depois disso mesmo, a própria sociedade que não pretendo transformar, mas pelo menos influenciar positivamente.

Pessoalmente como olha para estes três passos de transformação? Acredita que as grandes “metamorfoses” têm de começar sempre por uma modificação pessoal?

A primeira transformação, a mais profunda de todas, ocorre dentro de mim mesmo. Na tomada de consciência para uma vida una, para um sentido de responsabilidade pessoal, para a noção de que sou chamado a algo e, por isso mesmo, a viver uma vocação enquanto líder. Ao entendê-lo, devo comprometer-me (comigo e com outros que caminham connosco) a fazer vida, a transmiti-la com arrojo, a viver com sentido de missão. Esta semente, germinada no coração de vários, leva-nos a novos compromissos que transformam as empresas, bem como a novas iniciativas mobilizadoras e transformadoras. E, numa nova visão, alicerçada num novo entendimento, reconhecendo que “actuo como se tudo dependesse de mim, mas sabendo que tudo depende de Deus”, torno-me um líder que serve, que se descentra de si mesmo, que ambiciona uma missão maior, que cria mais valor, o qual é distribuído de forma mais justa e comprometida. Não pretendemos falta de ambição, mas, pelo contrário, uma ambição direccionada que nos conduza a resultados mais amplos, mais plenos, mais definitivos.

A seu ver, acha possível mudar uma empresa, afastando-a dos critérios “tradicionais do lucro” e aproximando-a dos critérios de “Francisco”?

A nossa missão é precisamente “tornar possível o impossível”, não por mérito próprio, mas como sinal de Esperança, de Fé, de Amor, de Verdade, nos nossos corações e no de muitos outros. É “ir a jogo” com tudo o que somos e temos.

Dividir o mundo em “lucrativo” e “não lucrativo” já não faz sentido. Nem tão pouco o lucro é a missão de uma empresa, pois isso seria menorizar o seu propósito. Não é excluir o lucro, mas dar-lhe outro significado, enquanto meio imprescindível, para uma finalidade maior, mais abrangente e com maior impacto.

Os critérios de Francisco são os de São Francisco de Assis, do século XII, construídos a partir de uma visão de ecologia integral – repare-se que aplicados a um mundo que fala agora em “objectivos de desenvolvimento sustentável” ou em critérios “ambientais, sociais e de governo” – que são mais perenes, mais plenos, mais amplos, mais completos. Sim, mais difíceis mas possíveis e que nos levarão a uma visão completamente renovada. Não digo melhorada, mas renovada, precisamente.

Dedicado essencialmente a líderes empresariais, deverá concordar comigo que o Congresso da ACEGE é significativamente ambicioso no seu propósito. Afinal, o mundo está cada vez mais ao contrário, vivemos numa era de extrema volatilidade, aliada a uma enorme incerteza face ao futuro e as empresas têm estado continuamente a ajustar-se a eventos raros e não previsíveis. Quais as características que considera obrigatórias para as empresas navegarem neste mar alvoroçado sem se afundarem?

Sim, o mundo parece ao contrário, mas não está. Temos de ter um olhar de enorme esperança sobre os desafios que se nos colocam e perguntarmo-nos “o que posso construir a partir daqui?”. Olho para o tempo actual com imenso amor, porque é aquele que me toca a cumprir a minha missão, porque o revejo em tantos outros que se cruzam comigo e me inspiram a isso mesmo. Pergunto-me diariamente “Que esperas Tu de mim, Senhor?”

Mas voltemos para o mundo terreno das empresas e do trabalho: enquanto líderes empresariais, estes deverão viver focados no seu propósito de criar valor e de o distribuir de forma justa, tendo presente que os resultados não se esgotam no trimestre (mesmo que sejam muito importantes), inovando e correndo riscos para um maior desenvolvimento, promovendo uma inteligência colectiva que vá para lá dos indivíduos, defendendo a dignidade das pessoas e respeitando-as, sendo promotora de uma ecologia integral e sabendo que actuam num ambiente competitivo mas que deve ser, sobretudo, ético e alicerçado em valores. São estes exemplos inspiradores que as pessoas buscam e que a sociedade valoriza. Devem ser exigentes, ambiciosas, rigorosas, ágeis e inovadoras. Devem olhar para as oportunidades adiante e não apenas para as dificuldades. O maior competidor de uma empresa é fixar-se em si mesma, ou nos seus competidores directos, e não na sua missão, no impacto que está ao seu alcance e que deverá criar.

O congresso servirá também de palco para a apresentação de mais um ambicioso projecto da ACEGE. Estou a falar do programa Semáforo, o qual, sei, é muito acarinhado por si. O que nos pode adiantar sobre o mesmo?

O programa Semáforo tem uma única finalidade: contribuir para a erradicação da pobreza em particular nas famílias dos que trabalham. Sabemos que não serão, provavelmente, os casos de maior vulnerabilidade, mas pretendemos que sejam para as situações dos que nos estão mais próximos, à nossa responsabilidade. Pretendemos ainda que seja mobilizador para os líderes empresariais e seus colaboradores reconhecendo que as empresas deverão continuar a ser um agente de criação de riqueza e justa distribuição. É nas empresas que assenta a realidade económica primária e é nas empresas que se empreende, que se transforma, que se correm riscos, que se procura uma nova ambição. Depositamos por isso enorme esperança na aplicação desta ferramenta para este fim último. Será mais uma iniciativa da ACEGE centrada na família e nas empresas como agentes fundamentais da sociedade.

Sem poder fazer futurologia, que resultados práticos poderão resultar desta “realidade que transforma” nos seus três eixos principais?

A expectativa do VII Congresso da ACEGE é que seja mobilizador, que complemente os inúmeros estudos já feitos e que permita criar um ecossistema solidário, dentro das empresas e na sociedade, no terceiro sector e no Estado. Que seja um caminho de convergência entre todos, na promoção da cultura de encontro e da sociedade do cuidado tantas vezes referida pelo Papa Francisco. É também uma oportunidade fantástica, única, para mobilizar os empresários e gestores e fazer da empresa este lugar de encontro e cuidado.

Que argumentos usaria para convencer alguém a vir ao Congresso?

Será um tempo de celebração de um caminho feito, de agradecimento também, mas, sobretudo, de reflexão sobre os desafios futuros que se nos colocam. Um caminho que não se faz isoladamente, mas com tantos outros que nos inspiram, nos desinstalam, nos mobilizam.

Será uma oportunidade para reflectir sobre o meu propósito na vida, no trabalho e em tudo o que estará ao meu alcance fazer. E é tanto e tão amplo!

A nossa missão última é estar no mundo para transformar o mundo. Mas não de qualquer maneira ou a qualquer preço. É fazê-lo com sentido de missão, com propósito cristão, com valores que perduram, eternos, mais perenes.

Por isso mesmo, vivemos tempos de Esperança, de enorme Fé e estamos chamados a fazê-lo com um olhar de amor, com sentido de missão, com espírito de serviço.

 

Entrevista por Helena Oliveira.