POR HELENA OLIVEIRANão foi a primeira vez – e decerto não será a última – que o Papa Francisco elegeu a globalização da indiferença como um dos principais males – ou talvez mesmo o mais perigoso – que caracteriza a espécie humana na actualidade.E também não é inovador o facto de, na habitual mensagem veiculada pelo chefe do Vaticano no dia 1 de Janeiro – Dia Mundial da Paz – Francisco ter conseguido, com a clareza e inteligente subtileza que caracteriza o seu discurso – elencar os mais complexos desafios que afectam os tempos em que vivemos e que se conjugaram (ainda mais) como a tempestade perfeita para fazer de 2015 um ano muito feio para a História: fundamentalismo, intolerância, massacres, perseguições em nome da fé ou da etnia, desrespeito pela(s) liberdade(s), destruição de direitos de povos inteiros, exploração de seres humanos submetidos a diferentes formas de escravatura, corrupção e crime organizado, guerra e o flagelo dos refugiados e de pessoas deslocadas à força, num desfiar de horrores que colocam em causa o grau de progresso civilizacional que, supostamente, deveria ser atingido no século XXI.
A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias
A Mensagem do Dia da Paz, iniciada pelo Papa Paulo VI a 8 de Dezembro de 1967 e tornada “obrigatória”no ano seguinte, não só indica a linha diplomática a seguir, no ano em questão, pela Santa Sé, como é enviada aos ministros dos negócios estrangeiros de todos os países do mundo. Se, entre estes líderes, há quem a leia, não se sabe, e se serve para alguma coisa, muito menos.
Mas a verdade é que a síntese bem-feita do que correu mal, a identificação da “indiferença no que respeita aos flagelos do nosso tempo” e o apelo a formas de cooperação e solidariedade para corrigir/minimizar (já que não existem milagres) as formas de individualismo que causam isolamento, ignorância, egoísmo e, consequentemente, ausência de interesse e/ou envolvimento pelo sofrimento humano, deveriam realmente ser objecto de reflexão em todas as esferas, sejam elas políticas, económicas, sociais e educativas.
E porquê? Porque quando Francisco consegue definir, tão bem, para crentes e não crentes, a responsabilidade individual que, de uma forma ou outra, cada um de nós tem face ao estado do mundo, obriga a uma reflexão do quanto estamos a contribuir para nos tornarmos, nós próprios, indiferentes a esta enorme indiferença. Aconchegados que estamos na nossa zona de conforto, habituados que estamos a viver paredes-meias com a violência, com a desigualdade e com a injustiça, lá vertemos uma lágrima – ou nem isso – quando surge uma imagem como a do menino sem vida na areia da praia – “viralmente” partilhada por tantos seres chocados, num embate que dura mais do que poucos segundo e ao qual se segue a partilha de piadas, vídeos com gatinhos ou comentários imbecis sobre a imbecilidade cor-de-rosa. Cumprida que está a nossa “missão”, de imediato estamos prontos para seguir com as nossas vidinhas “porque o mundo é assim mesmo” e “tenho pena, mas cada um sabe de si e Deus sabe de todos”.
Assim, e quando o Papa opta por “titular” a sua mensagem como “Vence a indiferença e conquista a paz” está a fazer um apelo colectivo – mas também individual – não à definição habitual de “paz” – cujos sinónimos abrangem o sossego, a serenidade ou o silêncio – mas, e estranho seria que assim não fosse, à acção.
O aumento das informações (…) pode gerar uma certa saturação que anestesia e, em certa medida, relativiza a gravidade dos problemas
Aliás, quando a mensagem foi apresentada (a 15 de Dezembro) na sala de imprensa da Santa Sé, reunindo um painel que incluiu, entre outros, o Cardeal Peter Turkson, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz (CPJP) e o Arcebispo de Montreal Michele Pennisi – bem como um conjunto de refugiados provenientes da Síria, da Somália, do Quénia e da Costa do Marfim – foi o padre Luigi Ciotti [conhecido pelo seu profundo envolvimento na luta contra o crime organizado, em particular contra Mafia) que melhor “traduziu” a perspectiva de Francisco no que respeita à paz, apelidando-a de “contrária à ideia de quietismo”. “A verdadeira paz advém de um despertar espiritual que tem consequências imediatas e práticas, que pedem para serem reincarnadas em acções que envolvam a nossa existência enquanto pessoas e cidadãos (…). Habitar as ‘periferias’ é o primeiro passo para a construção da paz, a base para uma civilização mais humana e para uma sociedade de proximidade, na qual as pessoas não funcionem como meros instrumentos para o lucro. E em que o bem-estar de uns poucos não signifique pobreza, exclusão, desespero e morte de muitos outros”.
As diferentes formas de indiferença
Apesar de, e originalmente, esta Mensagem difundida no primeiro dia do ano não ter a pretensão de ser qualificada como exclusivamente religiosa ou católica, servindo antes como o lançar de uma “semente de humanidade” para todos os que “querem verdadeiramente a paz”, Francisco é hábil também na forma como a formula e apresenta, a crentes e não crentes.
Enquanto líder espiritual de mais de mil milhões de católicos –cerca de 1/7 da população mundial – Francisco sabe que é através dos ensinamentos de Cristo que melhor veicula uma mensagem que se quer de esperança e tolerância. Mas também sabe que a sua popularidade não se esgota nos membros da Igreja a que preside. E ao juntar, neste discurso, a referência ao Jubileu (extraordinário) da Misericórdia, é a toda “a humanidade” que pede para “agir, conjunta e solidariamente” nesta luta contra a indiferença.
Algumas pessoas preferem não indagar, não se informar e vivem o seu bem-estar e o seu conforto, surdas ao grito de angústia da humanidade sofredora
Reconhecendo igualmente os esforços feitos pelos líderes mundiais nos três grandes “eventos” globais que tiveram lugar ao longo de 2015, – a Cop21 em Paris, a III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento em Adis Abeba e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – e nos quais, ele próprio, não se escusou, directa ou indirectamente, de participar, nomeadamente com a primeira “encíclica ambiental” da história da humanidade, o Papa não deixa, por isso, de exortar firmemente os mesmos decisores globais a fazerem o que cunhou como “gestos corajosos de preocupação” para com os mais vulneráveis, com enfoque particular nos reclusos, migrantes e desempregados. Mas estes “recados” aos que lideram o destino do planeta serão matéria a analisar mais à frente.
Para já, atentemos nas “diferentes fisionomias” que a indiferença para com o próximo assume e mediante as quais Francisco nos obriga, a todos, a colocar a mão na consciência numa espécie de “ninguém escapa”- ao mesmo tempo que oferece também um excelente retrato da sociedade em que vivemos, uma outra “particularidade” bem-sucedida nos escritos deste Papa. Ora vejamos:
- Informação: “a saturação que anestesia e relativiza”
É, sem dúvida, uma marca indelével da sociedade em que vivemos. Numa era em que a informação é tanta que, muitas vezes, se transforma em desinformação, para o Papa, por muito bem informados que estejamos, tal não se traduz num “aumento de atenção aos problemas”. Antes pelo contrário. Pode, sim, “gerar uma certa saturação que anestesia e, em certa medida, relativiza a gravidade dos problemas”, escreve, acrescentando ainda que, noutros casos, “ a indiferença se manifesta como falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante”. E basta olharmos à nossa volta para percebermos que assim é. Optamos por não querer saber das desgraças alheias, concentrando as nossas atenções no nosso próprio conforto e considerando que o que de mal acontece aos outros não é da nossa responsabilidade. “Surdo ao grito de angústia da humanidade sofredora”, escreve, “ o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente e confortável, esqueço-me dos que não estão bem”.
Uma outra forma de nos escusarmos perante os problemas “dos outros” é “culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas” : quem não assistiu ao “meter no mesmo saco” refugiados e terroristas, por exemplo? Francisco não se escusa também de confessar algo que lhe causa uma “profunda irritação”: a corrupção profundamente enraizada em muitos países – “seja qual for a ideologia política dos seus governos” – testemunhada por estes “excluídos” que a vêem aumentar como “cancro social”.
- Indiferença sobre o “estado de saúde da nossa casa comum”
Também a indiferença do homem pelos outros – e dado o inter-relacionamento e interdependência global que caracteriza a sociedade actual – se faz sentir na destruição do meio ambiente, o qual e como sabemos, é um dos temas “queridos” ao Papa, e sobre o qual escreveu magistral e claramente na sua encíclica Laudato si’, também já aqui referenciada. Francisco recorda o que muitos líderes mundiais fingem não ver: que a indiferença relativa à destruição ambiental e às suas trágicas consequências “desenraízam comunidades inteiras”, “criam novas pobrezas”, não se esquecendo de questionar: “quantas guerras foram movidas e quantas ainda serão travadas por causa da falta de recursos ou para responder à demanda insaciável de recursos naturais?” Apesar de serem inúmeros, um bom exemplo desta realidade e que muitos desconhecem – ou teimam em desconhecer – é o facto de o agravamento das secas na Síria causado pelo aquecimento global, a destruição das colheitas e o consequente deslocamento da sua população serem crescentemente apontados como os principais eventos que deram origem ao conflito que ali eclodiu em 2011 e que, como testemunhamos diariamente, produz doses inenarráveis de dramas de natureza variada.
- “Inércia e apatia” a nível individual e comunitário
Ao aspirarmos ao bem comum, é nosso dever contribuir – “na medida das nossas capacidades”, como salvaguarda Francisco, para o atingir, “especialmente para a paz, que é um dos bens mais preciosos da humanidade”. Quando fala na indiferença individual para com o próximo, rotulando-a de “inércia e apatia”, o Papa evoca ainda o ciclo vicioso que estas atitudes promovem, ao perpetuarem as situações de injustiça e os desequilíbrios sociais, os quais, por sua vez, levam a conflitos e descontentamentos que podem dar origem a situações de violência. Sem nunca citar, abertamente, nenhuma contenda em particular, Francisco vai-nos guiando, numa espécie de roteiro bem definido, no sentido dos vários conflitos que persistiram (e, em alguns casos, emergiram e se intensificaram) ao longo de 2015.
(…) A indiferença relativa à destruição ambiental e às suas trágicas consequências “desenraízam comunidades inteiras e criam novas pobrezas
Todavia, é a indiferença “a nível comunitário” que com mais crueza, e até violência, transparece no seu discurso. Habituado que está a não recorrer a “falinhas mansas” quando os assuntos são férteis em gravidade, Francisco acusa a profusão de culturas orientadas “pelo lucro e pelo hedonismo” que favorecem e “justificam acções e políticas que acabam por constituir ameaças à paz”. Coadjuvadas pela indiferença face “ao outro”, à sua dignidade e aos seus direitos fundamentais, justificam também “políticas económicas deploráveis, precursoras de injustiças, divisões e violências”, que apenas servem para perseguir o “bem-estar próprio ou o da nação”. E é incisiva e demolidora a crítica que faz aos “projectos económicos e políticos dos homens” que têm como objectivo “a conquista ou manutenção do poder e das riquezas, mesmo à custa de espezinhar os direitos e exigências fundamentais dos outros”. Numa espécie de aviso “depois não se admirem”, o Papa escreve ainda que “quando as populações vêem negados os seus direitos elementares, como o alimento, a água, os cuidados de saúde ou o trabalho, sentem-se tentadas a obtê-los pela força”.
Estas são, em síntese, algumas das indiferenças elencadas pelo chefe do Vaticano que, como já anteriormente referido, afirma ainda que o fomento de uma cultura de solidariedade e misericórdia requer o empenho de “uma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades” e, em particular, os de carácter educativo e formativo.
A começar pelas famílias, enquanto responsáveis por uma “missão educativa primária e imprescindível” e que representam o lugar por excelência onde “se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e cuidado pelo outro”; seguindo-se-lhe os educadores e formadores, que têm, nas diferentes instituições, “a difícil tarefa de educar as crianças e jovens” e que “devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa” e sem esquecer os “agentes culturais e os meios de comunicação social” cujas responsabilidades no campo da educação e da formação não devem sobrepor “os interesses particulares” ao “serviço da verdade”.
Os recados aos líderes
Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, pretendendo encontrar a solução numa ‘educação’ que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos
Entre as suas várias solicitações “aos líderes dos Estados para que realizem gestos concretos a favor dos nossos irmãos e irmãos que sofrem pela falta de trabalho, trabalho, terra e tecto”, Francisco destacou a abolição da pena de morte, a criação de emprego digno para os desempregados, o acesso universal à saúde, o perdão ou “gestão sustentável” das dívidas internacionais dos países mais pobres e o fim da discriminação das mulheres, em particular no campo laboral.
Mas e mais uma vez, enquanto fio conector e presente ao longo de toda a Mensagem, Francisco recorda que, “no espírito do Jubileu da Misericórdia, cada um é chamado a reconhecer como se manifesta a indiferença na sua vida e a adoptar um compromisso concreto que contribua para melhorar a realidade onde se vive, a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho”.
Quanto aos Estados, o apelo a compromissos sérios é ainda mais directamente formulado.
Começando pelas condições precárias em que vive a maioria dos reclusos e alertando para a “finalidade reabilitadora da sanção penal” em conjunto com “a possibilidade de inserir, nas legislações nacionais, penas alternativas à detenção prisional”, Francisco apela, mais uma vez, à abolição da pena de morte – aquele que foi um dos pontos altos do seu discurso perante o Congresso norte-americano em Setembro último – onde esta ainda existir e que os Estados em causa considerem a possibilidade de uma amnistia.
Quantas guerras foram movidas e quantas ainda serão travadas por causa da falta de recursos ou para responder à demanda insaciável dos recursos naturais?
Sublinhando, em mais uma jogada de subtil inteligência na escrita e no discurso, que “a clandestinidade traz consigo o risco de arrastar os migrantes para a criminalidade”, obviamente que o Papa não poderia deixar de fora, nesta Mensagem, o drama dos refugiados. A este respeito convém recordar que, numa altura em que nenhum líder mundial se mostrava preocupado com a chegada de milhares de migrantes a Lampedusa, foi a pequena ilha no sul de Itália que Francisco escolheu para a sua primeira visita enquanto chefe do Vaticano. E, na altura, o mundo ouviria falar, pela primeira vez, em duas frases que a ele se “colaram”: a “globalização da indiferença” e o facto de o mundo “rico” continuar a permitir que o Mediterrâneo se transformasse num “imenso cemitério”. Se, à época, ninguém lhe deu ouvidos, hoje em dia é impossível não recordar que já em 2013, a Europa se deveria ter unido e planeado uma solução para este flagelo que, como sabemos, piorou para níveis inimagináveis e conseguiu colocar em questão não só as vidas de milhares de pessoas, como os próprios valores sobre os quais a União Europeia foi edificada. Nesta mensagem em particular, Francisco “dirige um convite” para que os Estados repensem as suas legislações relativas às migrações, recorda o valor inegável da hospitalidade e exorta a que se aposte numa facilitação da integração destes migrantes, com particular relevo para que se lhes conceda uma residência.
Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade
Em nome de todos “os que sofrem pela falta de trabalho, terra e tecto”, é também com particular preocupação que pede aos Estados que invistam na criação de empregos dignos, na medida em que “a chaga do desemprego” não só lesa famílias e jovens, como lhes retira dignidade e esperança, os quais são apenas parcialmente compensados pelos (embora necessários) subsídios e com um apelo particular relacionado com a discriminação laboral no feminino e com a precariedade no trabalho.
A terminar a lista de apelos, o infelizmente mais difícil de todos: que os líderes olhem para além das suas fronteiras (e interesses) na esperança de renovarem as suas relações com os outros povos. O que a acontecer um dia seria, sem dúvida, um enorme milagre.