A propósito da morte do Papa, algumas das nossas mais destacadas figuras políticas salientaram a sua importância na queda dos sistemas de Leste mas, estranhamente (ou talvez não), gastaram o triplo do discurso a destacar os malefícios do capitalismo. Trata-se do regresso à velha distorção histórica e à equívoca equivalência dos extremos – “nem liberalismo nem socialismo” que a Centesimus annus quis superar.
Na verdade, a propósito dos sistemas de organização económica que – para simplificar – podemos chamar “socialismo” e “capitalismo”, o autor da Centesimus annus, não por acaso, começou por se dedicar ao estudo da antropologia, desenvolvendo uma visão da liberdade, da responsabilidade e da criatividade humana, que lhe permitiu dizer que “o erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, [o socialismo] considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social.”
Em relação ao outro extremo (o capitalismo) o Papa, diz que a “moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo económico e em muitos outros campos. A economia, de facto, é apenas um sector da multiforme actividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente.” Dito de outro modo, João Paulo II atribui à raiz deste sistema exactamente o que em substância acha em falta no sistema socialista: o respeito pela liberdade da pessoa.
É a partir daqui que se tem de entender a sua distinção (nº 42 da Centesimus annus) entre capitalismo “bem entendido” e capitalismo “mal entendido”. E é a partir dela que os que entendem que o sistema de livre mercado, do ponto de vista económico, é o melhor dos sistemas possíveis, devem tentar depurá-lo dos seus aspectos negativos que, segundo o Santo Padre, o tornariam inaceitável. Para tal não há que corrigir coactivamente o sistema, através da intervenção estatal, antes – respeitando tudo o que se refere à propriedade privada dos meios de produção; ao mecanismo de preços para melhor afectação de recursos; e a liberdade de empreender – enquadrar o dito sistema num sólido contexto jurídico. O que significa que as críticas da Centesimus annus – uma Encíclica que segundo Novak muito deve à influência de Hayek – “não estão dirigidas ao sistema económico, mas ao sistema ético-cultural”.
Em suma, como diria o meu amigo Rafael Termes – um homem unido ao Papa pela crença, pela idade e pelo gosto pelas alturas que tão bem soube exercitar pelo montanhismo – o que importa é enquadrar o funcionamento das variáveis económicas num contexto determinado por um correcto sistema jurídico-institucional e um sistema ético-cultural baseado na natureza e valor do homem, como ser racional e livre. Só assim se poderá esperar que o ensinamento de João Paulo II para o sistema de mercado produza os melhores resultados, tanto do ponto de vista económico como do ponto de vista ético.
José Manuel Moreira
P.S. – A morte de João Paulo II coincidiu, entre nós, com a ordenação de um novo bispo, D. Carlos Azevedo, que é, de facto, uma esperança e uma certeza para a Igreja em Portugal.
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