Numa recente missão para o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a actriz Angelina Jolie teve a oportunidade de visitar um campo de refugiados no Chade, junto à fronteira com o Sudão. Reunida com um grupo, Angelina Jolie perguntou-lhes o que mais necessitavam.
Eram pessoas que tinham assistido à morte de familiares, presenciado violações, viram as suas casas roubadas e queimadas, pertenciam a comunidades que foram, pura e simplesmente, saqueadas.
Perante a pergunta de Angelina Jolie, vieram as respostas. Melhores tendas, disse um. Mais e melhor acesso a cuidados médicos e de assistência, acrescenta outro. Mais segurança, exclama um outro. É então que um jovem levanta a mão e diz, com uma enorme simplicidade: “Nós queremos responsabilização, nós queremos um julgamento”.
Naturalmente que a responsabilização tão simplesmente reclamada por aquele jovem refugiado representa uma noção abstracta e distante para um rapaz para quem o conceito está muito longe do interior de um campo de refugiados – até por esta circunstância, as suas palavras foram mais marcantes.
Mas a sua afirmação revelou o reconhecimento de algo elementar: a responsabilização é, talvez, a única força suficientemente poderosa para quebrar o ciclo de violência, sob as mais diversas formas, que marca tantos conflitos. Através da responsabilização podemos iniciar um processo que potencia a correcção de erros do passado e, em simultâneo, permitirá alterar os comportamentos no futuro.
Ao ler este testemunho de Angelina Jolie dei por mim a estabelecer uma imediata associação ao processo do BCP.
Ao longo do último ano, no BCP, assistimos a um pouco de tudo, a começar por uma luta pelo poder, onde foram desvendadas circunstâncias e descritos pormenores menos nobres e dignificantes. A partir daqui, tudo foi acontecendo. As intrigas permanentes e os jogos de bastidores. O conhecimento público de empréstimos concedidos sem quaisquer critérios racionais de uma correcta e prudente gestão de risco e de avaliação do negócio. As dívidas perdoadas que, perante o mercado e os observadores, soam a “acerto de contas” entre aliados de uma mesma causa. A informação sonegada ao mercado. A manipulação do preço das acções, através da concessão de financiamentos a sociedades offshore que, sendo titulares de posições accionistas relevantes, mais não eram do que depositárias de acções próprias que o Banco possuía por interposta entidade.
Como se tudo isto já não fosse mais do que suficiente para que o BCP implodisse, eis que, em determinada altura, as ilegalidades cometidas ultrapassaram o domínio da ética e dos princípios, ou da falta deles, sendo classificadas como um caso de polícia. Nesta altura, a cúpula do BCP cai. Entram em acção as autoridades reguladoras e de supervisão que, de forma atabalhoada, vêm a público tentar justificar o injustificável e, com uma enorme retórica, olham para o lado e sacodem dos seus ombros todas e quaisquer responsabilidades.
Sejamos claros: neste infeliz e pouco dignificante processo, todos os intervenientes falharam. Uns, por acção directa e activa, os órgãos de gestão do Banco e todos aqueles que, sintonizados com a adopção de práticas esquemáticas, permitiram que o BCP, durante muito tempo, tenha agido e interferido no mercado e perante os seus concorrentes, accionistas, colaboradores e clientes, de forma incorrecta (para ser simpático…) – desvirtuou as regras que devem pautar o exercício da actividade financeira e demonstrou não saber que, quase sempre, nem todos os fins justificam todos os meios. Outros, a quem é solicitada a necessária e importante responsabilidade de supervisionar o sistema financeiro, regulando-o, fazendo cumprir as normas aplicáveis, também falharam, pela passividade com que lidaram com os factos e com as circunstâncias e pela forma leviana com que, ainda hoje, tratam este assunto.
A telenovela continuará nos próximos dias e as cenas dos próximos capítulos não se afiguram particularmente interessantes.
No meio de todo este turbilhão, ficamos com a sensação que muito poucos ganharam, mas muitos perderam. E, acima de tudo, onde se exigia ética, ela esteve ausente; onde a existência de valores e de princípios eram dados como garantidos, eles, pura e simplesmente, não existiam.
Lembro-me, de novo, das palavras daquele jovem refugiado que, no meio de um ambiente desolador, marcado por vivências traumáticas, mas com um olhar de esperança e com palavras firmes e, até, desconcertantes, afirmou: “Queremos a responsabilização!”.
E se todo este processo não fosse grave, mas apenas hilariante, eu recomendaria aos accionistas do BCP que elegessem Angelina Jolie para o Conselho Superior… Não ganhavam, provavelmente, novas competências financeiras, mas melhorava substancialmente o ambiente e tinham, entre si, um ícone na arte da representação!
Pedro Vaz Serra Associado ACEGE
Texto publicado originalmente no Jornal de Negócios de 18 de Janeiro de 2008
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