Dos tempos de criança passados na aldeia, guardamos uma imagem forte de um curioso episódio vivido aí umas duas ou três vezes por ano. Eram horas agitadas perante o grito estridente de alguém que surgia pela rua da povoação anunciando em altos brados: “Vem aí a Guarda! Vem aí a Guarda! Já passaram na ponte da Estação!”
Perante este dramático anúncio, cada um mobilizava-se como podia para tarefas urgentes: encerrar os cães nos quinteiros, enxotar as galinhas da rua, esconder os carros de bois e outros animais domésticos, fechandose a seguir dentro das casas até que a GNR se fosse embora.
De que é que se tratava? Das rondas periódicas que estes agentes faziam no mundo rural, a fim de fiscalizar o cumprimento de algumas normas reguladoras da vida em comunidade. Por exemplo, os cães tinham de ter licença. Mas esta só poderia ser concedida se o animal fosse vacinado. E onde vacinar o animal?
Era uma trabalheira: tínhamos de levar o cão à cidade, ao veterinário municipal em determinados dias do mês e depois pagar uma elevada taxa, quer pela execução do serviço, quer pela licença e respectiva coleira. Outros animais careciam também de registo sanitário, formalidade que quase ninguém cumpria, a não ser que tivesse de ir à feira vender ou trocar gado.
Os carros de bois também eram registados e sujeitos a uma taxa municipal, cujo pagamento era comprovado por uma pequena chapa metálica aposta na fronte da “cabeçalha”. Mais bizarro ainda: as aguilhadas, para aqueles que ainda sabem o que isso era, tinham de ter um “ferrão” de dimensão apropriada, pois, caso contrário, o seu proprietário era autuado e apreendida a referida alfaia agrícola.
Resumindo: porque era generalizado o desrespeito por estas normas municipais, quando a GNR aparecia a fiscalizar, aos cidadãos restava esconder tudo e evitar problemas com a autoridade.
Recordámos estes episódios quando há dias visitámos a Feira Gastronómica do Porco, em Boticas – por sinal um belo certame, que se vai afirmando de ano para ano, como uma realidade muito positiva no que respeita ao artesanato alimentar e ao esforço que esta a ser feito para fixar pessoas nestes despovoados territórios do interior norte do País.
Pois bem, a pergunta que muitos visitantes colocavam era se a ASAE já teria estado na Feira, para logo de seguida se interrogarem sobre o que aconteceria se os seus inspectores aparecessem. Perante tal perspectiva, a angústia de um ou outro artesão não era pequena. Mas alguém lembrou, e bem: então o que é que a ASAE lá ia fazer, depois de tudo ter sido inaugurado e visitado pelas autoridades, designadamente o Governador Civil e o Presidente da Câmara?
O certo, porém, é que tanto quanto vamos ouvindo, a indústria alimentar anda apavorada perante a ameaça da visita destes inspectores que, ao que consta, “cortam a direito”, sem olhar a desculpas.
E são capazes de ter razão, porque – “dura lex sed lex” – a lei tem de ser cumprida num Estado de Direito.
Todavia, as leis são ou deviam ser feitas para regular a vida das comunidades e não para acabar com elas. Ao serem exemplarmente rigorosos, os senhores da ASAE estão a dar um enorme “azar” a todos os estabeleci* mentos que visitam. Só falta lembrarem-se de ir às cozinhas das famílias, pois então é que vai ser o bom e o bonito…
Agora a sério: estamos perante uma situação que não faz qualquer sentido. Ou se suspende a actividade da ASAE durante uns tempos para repensar os métodos ou então adequa-se a legislação aos nossos usos, costumes, e tradições. Importa é não acabar com as poucas fontes de receita e vida económica que ainda existem, designadamente nestas martirizadas terras do interior.
Harmonização Comunitária, muito bem, naquilo em que ela nos beneficie. A nós poupem-nos e permitam que continuemos a saborear alguns bons petiscos, como a chouriça, o salpicão e a alheira. Apostamos que os inspectores da ASAE gostam tanto quanto nós.
Presidente da ACECE – Vila Real
Texto publicado originalmente no jornal de Negócios no dia 3 de Março de 2008
Armando Moreira
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