ASAE ou azar?

1918

Dos tempos de criança passados na aldeia, guardamos uma imagem forte de um curioso episódio vivido aí umas duas ou três vezes por ano. Eram horas agitadas perante o grito estridente de alguém que surgia pela rua da povoação anunciando em altos brados: “Vem aí a Guarda! Vem aí a Guarda! Já passaram na ponte da Estação!”  

Perante este dramático anúncio, cada um mobilizava-se como podia para tarefas urgentes: encerrar os cães nos quinteiros, enxotar as galinhas da rua, esconder os carros de bois e outros animais domésticos, fechandose a seguir dentro das casas até que a GNR se fosse embora.

De que é que se tratava? Das rondas periódicas que estes agentes faziam no mundo rural, a fim de fiscalizar o cumprimento de algumas normas reguladoras da vida em comunidade. Por exemplo, os cães tinham de ter licença. Mas esta só poderia ser concedida se o animal fosse vacinado. E onde vacinar o animal?

Era uma trabalheira: tínhamos de levar o cão à cidade, ao veterinário municipal em determinados dias do mês e depois pagar uma elevada taxa, quer pela execução do serviço, quer pela licença e respectiva coleira. Outros animais careciam também de registo sanitário, formalidade que quase ninguém cumpria, a não ser que tivesse de ir à feira vender ou trocar gado.

Os carros de bois também eram registados e sujeitos a uma taxa municipal, cujo pagamento era comprovado por uma pequena chapa metálica aposta na fronte da “cabeçalha”. Mais bizarro ainda: as aguilhadas, para aqueles que ainda sabem o que isso era, tinham de ter um “ferrão” de dimensão apropriada, pois, caso contrário, o seu proprietário era autuado e apreendida a referida alfaia agrícola.

Resumindo: porque era generalizado o desrespeito por estas normas municipais, quando a GNR aparecia a fiscalizar, aos cidadãos restava esconder tudo e evitar problemas com a autoridade.

Recordámos estes episódios quando há dias visitámos a Feira Gastronómica do Porco, em Boticas – por sinal um belo certame, que se vai afirmando de ano para ano, como uma realidade muito positiva no que respeita ao artesanato alimentar e ao esforço que esta a ser feito para fixar pessoas nestes despovoados territórios do interior norte do País.

Pois bem, a pergunta que muitos visitantes colocavam era se a ASAE já teria estado na Feira, para logo de seguida se interrogarem sobre o que aconteceria se os seus inspectores aparecessem. Perante tal perspectiva, a angústia de um ou outro artesão não era pequena. Mas alguém lembrou, e bem: então o que é que a ASAE lá ia fazer, depois de tudo ter sido inaugurado e visitado pelas autoridades, designadamente o Governador Civil e o Presidente da Câmara?

O certo, porém, é que tanto quanto vamos ouvindo, a indústria alimentar anda apavorada perante a ameaça da visita destes inspectores que, ao que consta, “cortam a direito”, sem olhar a desculpas.

E são capazes de ter razão, porque – “dura lex sed lex” – a lei tem de ser cumprida num Estado de Direito.

Todavia, as leis são ou deviam ser feitas para regular a vida das comunidades e não para acabar com elas. Ao serem exemplarmente rigorosos, os senhores da ASAE estão a dar um enorme “azar” a todos os estabeleci* mentos que visitam. Só falta lembrarem-se de ir às cozinhas das famílias, pois então é que vai ser o bom e o bonito…

Agora a sério: estamos perante uma situação que não faz qualquer sentido. Ou se suspende a actividade da ASAE durante uns tempos para repensar os métodos ou então adequa-se a legislação aos nossos usos, costumes, e tradições. Importa é não acabar com as poucas fontes de receita e vida económica que ainda existem, designadamente nestas martirizadas terras do interior.

Harmonização Comunitária, muito bem, naquilo em que ela nos beneficie. A nós poupem-nos e permitam que continuemos a saborear alguns bons petiscos, como a chouriça, o salpicão e a alheira. Apostamos que os inspectores da ASAE gostam tanto quanto nós.

Presidente da ACECE – Vila Real

Texto publicado originalmente no jornal de Negócios no dia 3 de Março de 2008

Armando Moreira

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