POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
1- Justos e pecadores
Cada um de nós acha que é boa pessoa. Há pessoas que se divertem a explorar e a oprimir os outros, para quem enganar é uma aventura e um prazer. Para esses é bom dizer que gerir com ética é um compromisso com os outros.
A maior parte de nós acha-se boa pessoa. Aliás, o próprio acha-se sempre boa pessoa. Os outros é que nem sempre concordam. Procuramos fazer bem feito e gerir com ética. A nós não é preciso dizer que gerir com ética é um compromisso com os outros. Nós sabemos isso.
E, apesar disso, fazemos coisas erradas, violamos a ética e fazemos disparates. Por isso, dizer-nos que gerir com ética é um compromisso com os outros não serve para nada.
Ora, como é que pessoas como nós fazem barbaridades? Como é que boas pessoas fazem pecados? Esse é o problema que vale a pena discutir.
2- Os pecados dos justos
Como é que pessoas boas fazem o mal? Fazem o mal porque dizem que é bom. Esse é o nosso principal problema. Nós, aliás, justificamos os nossos disparates através de compromissos com os outros.
Fugimos aos impostos, mas fazemos isso porque achamos justo, dado que o sistema fiscal é injusto; «eu não devia fazer isto aquele meu concorrente, mas o tipo é um bandido e já me fez várias; ele merece para aprender como elas lhe mordem!»; «estes trabalhadores vão para a rua sem direitos, mas o meu compromisso com os accionistas assim o impõe».
O povo diz que «de boas intenções está o inferno cheio». Eu diria que «de compromissos com os outros está a gestão sem ética cheia».
3- Os outros e o outro
Uma coisa é o compromisso com os outros, outra muito diferente é o compromisso com o outro. Nós amamos a humanidade. Só não gostamos do tipo que está ao lado. Adoramos amar à distância, pela televisão, os curdos, o povo mauber, os africanos, mas não aqueles que encontramos na nossa vida todos os dias.
Fazemos isso porque o próximo é um «chato», irritante e maçador. Temos boas razões para não amar, ou sequer suportar os que nos estão próximos, porque conhecemos todos os seus defeitos.
É verdade que hoje o longínquo é próximo, e também temos o dever de amar esses que hoje conhecemos. Mas o próximo continua a ser aquele que conhecemos bem e que, por isso mesmo, não queremos amar.
O nosso compromisso, pois, não é com os outros, mas com o outro, aquele que está próximo.
4- Gerir é um compromisso
Mas a gestão, pura e simples, é um compromisso com os outros. Todos os contratos da empresa, todas as suas parcerias, projectos, investimentos são compromissos com os outros. Uma empresa pode definir-se com um conjunto de compromissos com os outros. Por isso, gerir com ética não pode ser apenas um compromisso com os outros.
O sucesso empresarial implica sempre agradar a alguém: o cliente. Uma empresa que não agrade ao cliente morre logo ali. Por isso a actividade empresarial é, pela sua natureza, um compromisso com os outros. Já Adam Smith, que era professor de Ética, ensinou que eu, ao preocupar-me com o meu bolso, acabo por ajudar os outros. «Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles têm o seu próprio interesse. Apelamos, não para a sua humanidade, mas para o seu egoísmo, e nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas das suas vantagens.» (A Smith (1776) Riqueza das Nações I, 2 p.95)
Neste sentido, gerir, qualquer que seja a forma de gerir, é sempre e em qualquer momento, um compromisso com os outros. Os empresários que são facínoras também têm compromissos com os outros. Aliás, muitos empresários facínoras acalmam assim a sua consciência.
Isso não é mau. Que a Economia, em si mesma, tenha uma ética latente é bom. É por isso que no mercado até os maus se comportam bem normalmente. Mesmo aqueles que apenas têm como propósito o seu lucro são levados a cumprir as leis, a respeitar os trabalhadores e o ambiente, porque isso é bom para o negócio.
A ética nos negócios é isso, mas é também outra coisa. Naqueles casos em que ser ético daria prejuízo, nos casos em que dava muito jeito violar as regras, enganar o próximo, fugir aos impostos ou poluir o ambiente, aí é que se vê quem é ético e quem não é. Nos casos normais, felizmente a maioria, onde ser bom dá bom resultado, todos se portam bem. Mas aí não se sabe quem é ético. Nos casos onde a ética faz diferença é que se vê a ética.
Então gerir com ética não é um compromisso com os outros. Pode ser um certo tipo de compromisso com os outros. Mas não basta dizer que é um compromisso com os outros. Se dissessemos que gerir com ética é um compromisso com os outros, estaríamos a dizer apenas que gerir com ética é uma coisa da mesma natureza do que gerir com habilidade, gerir com sucesso, gerir com «olho para o negócio», que é sempre um compromisso com os outros.
5- O compromisso dos compromissos
Mas a coisa ainda se pode aprofundar mais. Se os contratos são compromissos com os outros, qual é a natureza do compromisso que me diz que devo cumprir os compromissos? Não pode ser uma coisa da mesma natureza dos compromissos. A coisa que me leva a cumprir os contratos não pode ser um contrato, se não porque é que eu hei-de cumprir esse contrato?
Por isso, gerir com ética não pode ser um compromisso com os outros, porque isso são as coisas que a ética pretende regular. A ética tem de estar a outro nível, para poder regular os compromissos da gestão.
6- O compromisso comigo
Se gerir com ética não é um compromisso com os outros, então é o quê? O que é que há que tenha força suficiente para forçar os meus compromissos com os outros? Qual é o compromissos que me pode forçar a cumprir os compromissos?
Só há uma pessoa que tem força suficiente para me levar a regular com ética os meus compromissos: eu. A única coisa que eu levo verdadeiramente a sério sou eu próprio. Eu só me levo a sério a mim mesmo (e muitas vezes, a única pessoa que me leva a sério sou também eu).
A ética é pois um compromisso comigo mesmo. A ética é sempre uma questão de honra, de carácter, de brio, e esses são compromissos comigo mesmo. A única coisa que me impede de fazer coisas erradas, mesmo quando eu consiga arranjar desculpas para isto, é que eu não faço coisas destas.
O que está em causa na ética sou sempre eu, a minha honra, a minha vida e, acima de tudo, da finalidade da minha vida. A razão última porque eu sou ético, sou eu, não são os outros. A ética vê-se nos outros, mas não nasce dos outros.
Isso vê-se bem se questionarmos um acto ético. Imaginem que perguntam: «porque é que eu fui ético, fui justo, fui decente com aquela pessoa?». Se a resposta tiver algo a ver com o outro, então eu não sou lá muito ético. Se eu pratiquei o preço justo porque ele é simpático, então se ele não fosse simpático, eu não o faria. Se não o castiguei porque ele é do Benfica ou vota no meu partido, se ele não o fosse, eu seria mau. Se não o enganei porque ele é anda cá há muitos anos, eu enganaria se ele fosse desconhecido.
Se a resposta é deste tipo, eu não sou ético. Porque se ele fosse diferente, eu teria feito uma coisa má. Mas se a resposta for baseada em mim, então eu sou ético. Se eu fiz isso «porque faço sempre assim», «porque é assim que deve ser», «porque um homem não faz coisas dessas», «porque não me passou pela cabeça outra coisa». Se a resposta é deste tipo, eu sou ético.
7- A pergunta ética
Aqui chegamos à questão ética e à questão originante da ética. A questão ética é muito simples: «qual é a coisa certa que eu devo fazer aqui e agora?» Esta é a pergunta ética.
Normalmente nós achamos que a pergunta ética é de outra natureza. Adoramos fazer debates éticos, quer sobre questões alheias, quer sobre questões abstractas. Essas perguntas são parecidas com a ética, mas não são perguntas éticas. Porque não são concretas, reais, verdadeiras. São perguntas ociosas, externas, especulativas.
O que está em causa na ética é, não um compromisso com os outros, mas sou sempre eu aqui e agora. Mas para responder a essa pergunta, é preciso responder a outra pergunta anterior, que não é ética, mas a suporta. A pergunta é: «qual é aquela coisa pela qual eu estou disposto a vender tudo?»; «O que é que eu quero da vida?»; «Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?»; «O que é que eu estou aqui a fazer?» Estas perguntas, que não são éticas, são ontológicas, antropológicas, metafísicas. Elas é que definem a minha personalidade, a minha honra e me permitem responder à pergunta ética. Não é possível responder à pergunta ética «o que é que eu devo fazer de bom agora?» sem responder antes a essas perguntas. Elas são o fundamento da ética.
A ética é sempre e só a busca da felicidade, da minha felicidade, da verdadeira felicidade. O que está em causa na ética sou eu e a finalidade da minha existência. Sou eu, mas não só eu. Aquilo a que eu entrego a minha vida é a justificação da minha ética. Se eu entrego a minha vida, se eu tenho como finalidade última da minha existência uma coisa maior do que eu, a minha ética é superior.
Adaptado da intervenção de João César das Neves, “Gerir com ética, um compromisso com os outros” – ciclo de debates da ACEGE
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