A pandemia demonstrou o primado das exigências do combate contra a morte evitável e os cuidados especiais que são devidos aos mais velhos e vulneráveis, que não podem ser vistos como um fardo a suportar. Neste contexto, a morte provocada não pode ser, hoje mais do que nunca, encarada como um tratamento médico
POR PEDRO VAZ PATTO
Theo Boer é um professor de ética médica holandês que durante vários anos foi membro da comissão de controlo da prática da eutanásia no seu país. Essa sua experiência levou-o a concluir, contra a sua convicção inicial, que a legalização dessa prática não se restringiu a casos raros e excecionais e conduziu à sua normalização. Esteve em Lisboa e proferiu uma conferência sobre essa sua experiência na Universidade Católica por alturas da discussão dos projetos de legalização da eutanásia apresentados na legislatura anterior.
Merece atenção um artigo que escreveu recentemente em parceria com Kevin Yuill (autor do livro Assisted Suicide: The Liberal, Humanist Case Against Legalization): What Covid-19 has revealed about eutanasia (“O que a Covid-19 revelou sobre a eutanásia”, em tradução livre)
Conclui esse artigo que depois da pandemia do coronavírus usar a morte como tratamento médico (como se pretende com a eutanásia) revela-se mais errado do que nunca. Verificando que, durante os dias de combate mais intenso à pandemia, a única clínica holandesa dedicada à prática da eutanásia fechou as suas portas (afirmando médicos que nela trabalham que a prioridade era outra, a de salvar vidas) e também foi substancialmente reduzida essa prática na Bélgica e no Canadá, ao mesmo tempo que, nesses e noutros países, os serviços de cuidados paliativos não viram diminuída a sua atividade, concluem os autores do artigo que a eutanásia (supostamente destinada a eliminar sofrimentos inevitáveis e intoleráveis) se revelou, afinal, uma prática não essencial, ao contrário do que sucede com os serviços de cuidados paliativos, esses sim, necessários e indispensáveis.
A pandemia demonstrou o primado das exigências do combate contra a morte evitável e os cuidados especiais que são devidos aos mais velhos e vulneráveis, que não podem ser vistos como um fardo a suportar. Neste contexto, a morte provocada não pode ser, hoje mais do que nunca, encarada como um tratamento médico – é o que afirmam lapidarmente Theo Boer e Kevin Yuill neste artigo.
Estas reflexões merecem particular atenção nesta altura em Portugal, quando também se impõe colher as lições desta pandemia do coronavírus e os nossos deputados proponentes da legalização da eutanásia afirmaram o seu propósito de levar até ao fim do processo legislativo essa sua proposta.
É certamente a redescoberta do valor de toda e qualquer vida humana a mais preciosa lição que podemos colher desta pandemia. Foi a necessidade de salvaguardar vidas humanas que nos levou a sacrificar liberdades fundamentais e, sobretudo, a assumir danos económicos e sociais de uma dimensão incalculável e nunca vista. Esse objetivo e essa opção foram, entre nós (e contra o que se verificou noutros países), aceites consensualmente. Pode até discutir-se se as restrições da vida social e da atividade económica não terão sido excessivas, mas parece continuar a ser aceite consensualmente o primado da salvaguarda de vidas humanas sobre a economia. É bom ter presente e salientar esse primado, pois só assim muitos encontrarão sentido para os sacrifícios por que estão a passar.
Também podemos colher desta pandemia, como lição, o de que as vidas não têm menor valor na sua fase mais avançada. Não é por terem uma expetativa de menos anos de vida futura que a vida das pessoas idosas merece menor consideração, nem estas devem ser, por isso, discriminadas no acesso a recursos de suporte vital escassos. Foi também o que genericamente se concluiu desta experiência. É por isso que todos lamentam que muitos idosos residentes em lares (entre nós, como noutros países) tenham morrido quando a sua morte poderia ter sido evitada.
Outra importante lição a colher desta pandemia é a da necessária valorização dos profissionais de saúde. Todos aplaudiram e agradeceram (entre nós, como noutros países) a entrega incondicional desses profissionais à causa da salvaguarda da vida humana
Que a vida humana é sempre um dom e merece sempre proteção, mesmo na suas fases mais avançadas e vulneráveis e que a missão dos profissionais de saúde merece todo o nosso reconhecimento precisamente porque está ao serviço dessa proteção – estas são verdades já bem conhecidas de há muito, mas que agora saíram reforçadas e se tornam mais evidentes aos olhos de todos.
Ora, a legalização da eutanásia contradiz radicalmente essas verdades. Aceita que a vida humana nem sempre é inviolável e pode deixar de merecer proteção, precisamente nas suas fases de maior vulnerabilidade (quando foi a proteção das pessoas mais vulneráveis que justificou e justifica todos os sacrifícios que comportou e comporta o combate à pandemia). E atribui aos profissionais de saúde uma tarefa (provocar a morte) que contraria frontalmente a sua missão indeclinável de proteção da vida humana (missão que todos hoje aplaudem e agradecem).
Os nossos deputados, ao analisar os projetos de legalização da eutanásia, não deveriam ignorar estas lições da pandemia, nem deveriam fechar os olhos a estas verdades que agora saíram reforçadas e se tornam mais evidentes aos olhos de todos.