As palavras são do Papa e foram proferidas numa mensagem exclusivamente enviada para os participantes do Congresso Mundial da UNIAPAC e lida na sua sessão de abertura. Para além dos vídeos enviados também por Marcelo Rebelo de Sousa e o Cardeal Peter Turkson para a mesma ocasião, esta primeira sessão ficou ainda marcada pelo alerta dado pelo monsenhor Bruno-Marie Duffé – que reafirmou a urgência de um novo paradigma cultural de desenvolvimento, o qual serve igualmente para a gestão, que proteja “a vida, o planeta e as pessoas” e que consiga superar a luta “entre o mero lucro” e os demais interesses como sejam “a dignidade, a solidariedade, o amor” – e pelos cinco pilares que, de acordo com o economista Stefano Zamagni, poderão ajudar as empresas na também crucial “grande transição”para novos modelos de governança corporativa
POR HELENA OLIVEIRA
Foi um auditório completamente cheio que recebeu a Sessão de Abertura do XXVI Congresso Mundial da UNIAPAC e com a reitora da Universidade Portuguesa a ser a primeira a subir ao palco, sublinhando a parceria estratégica e já longa com a ACEGE e, tendo em conta as temáticas em debate, lembrando igualmente como ao longo dos tempos a ideia de as empresas terem apenas como responsabilidade a criação de lucro para os accionistas se ter tornado completamente obsoleta. Citando o economista americano Milton Friedman, que considerava a ideia da responsabilidade social corporativa como “uma doutrina subversiva para a sociedade”, foi também com palavras de boas-vindas a todos os presentes que Isabel Capeloa Gil deu início ao que seria uma verdadeira maratona de ideias, testemunhos, reflexões e debates que se estenderiam ao longo de três dias.
Graças ao admirável mundo novo da tecnologia – que tantas oportunidades como desafios oferece – três discursos transmitidos em vídeo e enviados especificamente para esta sessão de boas-vindas animaram a concorrida Sessão de Abertura, servindo também como uma espécie de bênção e inspiração aos trabalhos que se lhe seguiriam.
A de Marcelo Rebelo de Sousa, que recordou que “num mundo que mais depressa promove o desentendimento do que a concórdia”, os negócios baseados na “dignidade da pessoa” consistem numa visão católica e ecuménica e que todos os que a partilham deverão ter em mente que a sua promoção na vida empresarial deverá ser feita através da “equidade, da justiça, da competência, do mérito e do serviço aos outros”; a do cardeal Peter Turkson,actual prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral (entidade que resultou da fusão de quatro outros conselhos pontifícios, por iniciativa do Papa Francisco), que defendeu a criação de um sistema empresarial inclusivo em que os negócios devem ser orientados para o bem comum, sublinhando ainda que “ter capital à disposição” só é uma verdadeira mais-valia se chamar os líderes empresariais “à livre responsabilidade de ajudar os mais pobres” e uma mensagem escrita do Papa Francisco (que será desenvolvida mais abaixo), “trazida em mãos” pelo monsenhorBruno-Marie Duffé, secretário do mesmo Dicastério.
Afirmando-se “atento ao papel central que a empresa e os seus actores desempenham ”face à economia e ao desenvolvimento”, o membro da Cúria Romanadefendeu a relevância de “procurar, de forma permanente, o que contribui para a construção de um mundo justo” – incluindo no que respeita à inovação – na era “da pós-modernidade”, sublinhando que, mais do que nunca, e perante questões como a revolução tecnológica e a incerteza do futuro a nível ambiental, é necessário “desenvolver capacidades humanas”, respondendo aos actuais “desafios para o futuro da humanidade” em nome “do sentido do desenvolvimento”.
Recordando ainda que a Igreja pode oferecer [às empresas] uma abordagem antropológica “começando sempre pela pessoa e pelos seus direitos”, Bruno-Marie Duffé não deixou também de criticar o facto de existirem muitos actores na economia que “querem estar livres de todas as referências ético-morais, querendo ter mais e mais”.
E foi precisamente para contrariar esta realidade que o Papa criou o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, com o objectivo de “sair de uma abordagem demasiadamente segmentada da sociedade”, a qual prejudica “a dignidade das pessoas” e o propósito de “comunidade”.
[quote_center]Mais que ‘fazer para’, vale a pena ‘construir COM’, Bruno-Marie Duffé[/quote_center]Para o secretário do Dicastério, que apresentou também a nova edição de “A Vocação do Líder Empresarial” e em plena harmonia com as palavras do Sumo Pontífice, é necessário “um novo paradigma cultural de desenvolvimento” que proteja “a vida, o planeta e as pessoas” e que consiga superar a luta “entre o mero lucro” e os demais interesses como sejam “a dignidade, a solidariedade, o amor”.
A construção deste novo paradigma – que também serve a gestão e ao qual se refere o Papa Francisco – deverá, pois, basear-se numa “matriz inspirada no Evangelho e na Doutrina Social da Igreja”, como afirmaBruno-Marie Duffé, defendendo que “o que realmente conta nesta perspectiva é o homem, cada homem, até toda a humanidade”. No particular, importa deixar-nos tocar e conduzir por aquilo que é o talento de cada pessoa”. No geral, é premente “partilhar os frutos desse talento”, através de uma vocação que permita “transmitir uma abordagem transversal do conhecimento” e “propor um diálogo entre actores”. Numa frase, mais que “fazer para”, vale a pena “construir COM”.
Princípios orientadores da Doutrina Social da Igreja devem ser cumpridos pelos líderes empresariais
“Promover uma economia mais humana” foi a principal ideia transmitida pelo Papa, o qual considerou também que “a decisão de reflectir sobre a missão e a vocação dos líderes económicos e de negócios é mais essencial do que nunca”.
Na mensagem, dedicada exclusivamente aos participantes do Congresso, Francisco recorda, e a propósito da decisão de reflexão sobre a vocação e missão da economia e dos líderes empresariais, um excerto da encíclica Laudato Si’: “à intensificação dos ritmos de vida e trabalho (…) vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade” (18).
Na mensagem em causa, o Santo Padre apelou também aos líderes empresariais que “serem fiéis à vossa vocação e missão implica manter um equilíbrio delicado entre inovação e uma produção crescentemente competitiva e, ao mesmo tempo, encarar o progresso num horizonte mais alargado que inclua o bem comum, a dignidade humana e o uso apropriado dos recursos naturais que nos foram confiados”. Reforçando também a ideia de que ao longo das suas vidas profissionais é frequente encontrarem situações onde estes valores estão em tensão, o que e consequentemente os obriga a tomar decisões práticas e importantes no que respeita à gestão e ao investimento, o Papa afirma ser útil, para os líderes empresariais, terem sempre presente três grandes princípios orientadores do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja.
O primeiro refere-se à centralidade das pessoas – no sentido que devem ser tratadas como pessoas “individuais”, tendo em conta as suas capacidades, aspirações, em conjunto com os seus problemas e dificuldades.”Quando uma empresa se transforma numa ‘família’, na qual a gestão se preocupa que as condições laborais sirvam a comunidade, os trabalhadores, por seu turno, tornam-se uma ‘fonte de enriquecimento’”, escreve, acrescentando ainda que “estes se sentem mais encorajados para colocar os seus talentos e capacidades ao serviço do bem comum, sabendo que a sua dignidade e circunstâncias são respeitadas e não simplesmente exploradas”.
[quote_center]Quando uma empresa se transforma numa ‘família’(…), os trabalhadores, por seu turno, tornam-se uma ‘fonte de enriquecimento’, Papa Francisco[/quote_center]O segundo está relacionado com o exercício do “discernimento económico” em que os objectivos devem ser sempre orientados pela regra do bem comum. “Este princípio fundamental do pensamento social da Igreja ilumina e, como uma bússola, direcciona a responsabilidade social das empresas, a sua investigação e tecnologia, e os seus serviços de controlo de qualidade, no sentido da construção de uma sociedade mais fraternal e humana para que se possam tornar ‘os bens deste mundo mais acessíveis para todos’ (Evangelii Gaudium, 203). Francisco sublinha ainda que o princípio do bem comum aponta o caminho para um crescimento mais equitativo onde “as decisões, os programas, os mecanismos e os processos são especificamente orientados para uma melhor distribuição do rendimento, para a criação de oportunidades de trabalho e para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo” (ibid., 204). E é neste sentido também que “ a vocação dos líderes empresariais se transformará num ‘compromisso nobre’ na medida em que estará mais aberta a ser ‘desafiada por um significado maior para a vida’” (ibid,. 205).
Por último, o Papa firma também que não se pode perder de vista o valor económico e moral do trabalho, o qual consiste “na forma como cooperamos com Deus numa ‘criação contínua’ (…) respeitando as duas dimensões, a individual e a pessoal, da pessoa humana”.
Assim, “a vocação nobre dos líderes empresariais será visível na medida em que toda a actividade humana se transforma numa testemunha da esperança no futuro e num incentivo para uma maior responsabilidade e preocupação através da utilização inteligente dos talentos e capacidade de cada pessoa”, acrescenta ainda. Francisco termina a sua mensagem recordando aos líderes presentes que, tal como a primeira comunidade de apóstolos, também os executivos e gestores cristãos são chamados a empreender o caminho da conversão” (…), permitindo que “Deus os inspire e guie no crescimento da nossa ordem social contemporânea.
[quote_center]Não se pode perder de vista o valor económico e moral do trabalho, Papa Francisco[/quote_center]A sessão de abertura do congresso terminou com uma apresentação do professor Stefano Zamagni (que o VER entrevistou), na qual apresentou os cinco pilares de Corporate Governance e de envolvimento dos accionistas para as empresas.
Há que travar uma guerra contra a desvinculação moral
Começando por citar o famoso livro “A Grande Transformação” do filósofo e economista húngaro Karl Polanyi publicado em 1944, Stefano Zamagni afirmou estarmos a viver uma segunda “grande transformação” relacionada com o fenómeno da globalização e com a 3ª e 4ª revoluções industriais, referindo também que se existe um consenso entre cientistas sociais, economistas e líderes empresariais no que respeita à necessidade urgente de mudança e reforma da ordem mundial, o mesmo não se passa com a direcção que estas devem tomar.
Em paralelo, o economista citou igualmente um estudo realizado em parceria entre a Accenture e o Global Compact das Nações Unidas, feito a 1000 CEO, que concluiu, tal como já o Papa emérito Ratzinger tinha enunciado na sua encíclica Caritas in Veritate, que “a economia global está no caminho errado e as empresas não estão a fazer a sua parte para que se crie um futuro sustentável”. No mesmo estudo, os líderes empresariais entrevistados concordam igualmente que o mau comportamento é incentivado em vez de ser penalizado, ideia que é igualmente defendida por pelo menos dois economistas laureados com o Nobel, Akerlof e Schiller, os quais reconhecem também que as presentes regras do mercado não “apoiam” o bom comportamento, conferindo, ao invés, incentivos para a má conduta. E é no seguimento das “maçãs podres no cesto” que o também professor de Economia oferece a sua visão sobre aqueles que considera serem os cinco pilares capazes de transformar o actual modelo de governança corporativa.
O primeiro está relacionado com o facto de as empresas serem organizações complexas cujo funcionamento depende mais de motivações intrínsecas, como por exemplo os planos de incentivos, os quais e de acordo com Zamagni são “sempre, sempre perigosos” e “apesar do que lemos em vários livros de economia que são propositadamente escritos para transformar a mentalidade das pessoas”. A longo prazo, acrescenta ainda, este tipo de sistemas de incentivos tendem a destruir a confiança que, “quando é quebrada, nada mais resta a fazer”. O Professor recorda ainda que a crise financeira de 2008 muito teve a ver com este tipo de incentivos.
[quote_center]As presentes regras do mercado não estimulam o bom comportamento, conferindo, ao invés, incentivos para a má conduta, Stefano Zamagni[/quote_center]A segunda consideração está relacionada com o facto de as organizações apenas conseguirem prosperar se forem capazes de aprender, de se adaptar transformarem-se a si mesmas ao longo dos tempos, desta feita sublinhando não a grande transformação de Polanyi, mas sim “a grande transição”.
Stefano Zamagni recorda também que o modelo taylorista de organização do trabalho – e mencionando a publicação em 1911 do livro “Os Princípios da Gestão Cientifica” de Frederick Taylor – apesar de obsoleto, continua a imperar em muitas empresas e não porque estas não tenham consciência da sua caducidade, mas antes porque é difícil empreender mudanças complexas.
Todavia, um novo modelo de organização está a emergir e de acordo com o conceito de holacracia, cunhado pelo professor de Harvard Brian Robertson no livro Holacracy : The New Management System for a Rapidly Changing World, o qual se relaciona em particular com a redistribuição de poder no interior das organizações. Zamagni faz ainda um paralelismo com o documento apresentado por Bruno-Marie Duffé, afirmando que as ideias que nasceram com a Doutrina Social da Igreja – “e que são transversais ao trabalho da UNIAPAC desenvolvido nos últimos 15, 20 anos” – têm um grande impacto nesta nova forma de organização. Ou, e como remata, “precisamos de mudar as nossas organizações, não em particular porque estejam podres, mas porque os seus modelos estão obsoletos”, principalmente na era das tecnologias convergentes, da Inteligência Artificial ou do machine learning.
O terceiro pilar introduzido por Zamagni tem como base as muitas e novas funções que, actualmente, as empresas “realizam” na sociedade, para além da criação de riqueza, emprego, bens e serviços. Ou seja, e como afirma, “é muito reducionista considerar que as empresas são meramente instrumentais”, sendo que o economista vai ainda mais longe considerando-as como “agentes políticos”, não no sentido de “partidos políticos”, mas de regresso à raiz grega da palavra que significa também “comunidade”.
[quote_center]Não temos falta de CEOs ou executivos competentes, mas sim de verdadeiros líderes, Stefano Zamagni[/quote_center]Assim e se as empresas não se podem isolar do resto da sociedade, devem também ter em consideração que não é possível fazer “negócios bons numa sociedade que está ‘danificada’”, alerta ainda. Ou e por outras palavras, o que Zamagni pretende dizer é que se um líder empresarial – ou qualquer outro cidadão – tem a noção de que a sociedade em que vive está “quebrada”, não pode achar que não tem nada a ver com o assunto, mas antes questionar-se sobre o que pode fazer para modificar essa situação. E é a isso que se chama “responsabilidade corporativa civil”, um conceito muito mais alargado do que o sobejamente conhecido termo “responsabilidade social corporativa” que, nos dias que correm, simplesmente já não é suficiente.
Chegada a altura de se expressar sobre o tema da ética ou dos valores éticos, “de que toda a gente fala, mas sem ter em atenção que nem todas as teorias éticas são ‘amigas da humanidade’ e de que é exemplo a ética utilitarista”, o Professor de Economia concorda, como seria de esperar, que as empresas precisam de normas éticas que as orientem nas suas interacções com todos os seus constituintes. Mas é a denominada “ética das virtudes” que tem de vigorar como norma organizacional e há que evitar a mera “linguagem dos valores” quando esta se encontra separada dos fundamentos espirituais e culturais que também guiam as empresas.
Por último, mas de todo menos importante, Zamagni refere-se à necessidade de se “travar uma guerra contra a desvinculação moral”, conceito magistralmente analisado pelo psicólogo Albert Bandura no seu livro com o mesmo nome Moral Disengagement: How People Do Harm and Live with Themselves. Sinteticamente, este consiste num “processo cognitivo que serve para desactivar os processos auto-reguladores que normalmente impedem os indivíduos de agir”. Assim, e tal como defende Bandura, a [correcta] linguagem dos valores é um poderoso antídoto contra este descomprometimento moral”, e que esta mesma linguagem dos valores pode ser encontrada também na Doutrina Social da Igreja.
Tecendo ainda algumas considerações sobre as implicações que resultam, para o mundo dos negócios, destes cinco pilares, Stefano Zamagni acusa ainda a falta de liderança existente na actualidade. “Não temos falta de CEOs ou executivos competentes”, afirma, “mas sim de verdadeiros líderes”.